No Tribunal de 1ª Instância de Matosinhos eu fui condenado pelo crime de ofensas à Cuatrecasas. Recorri desta sentença para o Tribunal da Relação do Porto, e perdi o recurso. O TRP confirmou esta parte da sentença (cf. aqui).
Quer dizer, em relação a este crime, eu já esgotei os recursos, já estou condenado duas vezes - já tenho aquilo a que os juristas chamam uma "dupla conforme". Portanto, em princípio, nesta parte, a sentença já deveria ter sido executada, o Tribunal da Relação do Porto já me deveria ter obrigado a pagar a indemnização de 5 mil euros à Cuatrecasas e a multa de 4 mil euros ao Estado.
E não obrigou?
-Não.
E porquê?
O nosso sistema de justiça criminal é um sistema de tipo acusatório, e tem uma longa tradição. Ele destina-se a penalizar pessoas que cometem verdadeiros crimes (v.g., homicídios, burlas agravadas) mas também a perseguir hereges.
Inicialmente os hereges eram de natureza religiosa, todos aqueles que, em público, fizessem prova de não professar a fé católica. Em breve, ainda durante a Monarquia Absoluta, passou também a incluir aqueles que ousassem desafiar ou parecer mal a ordem política estabelecida.
A instituição destinada a perseguir os hereges foi inicialmente a Inquisição, uma função que no tempo do Estado Novo viria a pertencer à PIDE e hoje é desempenhada pelo Ministério Público.
Em relação aos hereges, o sistema de justiça é accionado, não porque eles tenham cometido algum crime, mas para os perseguir politicamente (ou religiosamente), passando a ideia para a opinião pública de que eles são criminosos e, portanto, para lhes destruir o carácter e, se possível, também a vida.
A heresia não é crime, mas liberdade de expressão. Cristo cometeu várias heresias perante a tradição dos judeus. Eu também cometi uma heresia perante os fariseus do regime - pus-me a fazer um hospital pediátrico que competia a eles fazer e, por esse facto, fi-los parecer mal.
Se a heresia não é crime, não há lugar a pena. Toda a pena revestirá, aos olhos da opinião pública, o carácter de uma injustiça, e arruinará a credibilidade do próprio sistema de justiça que, da próxima vez, terá grande dificuldade em fazer o mesmo a outro.
Ao condenarem Cristo, aquilo que ficou arruinado não foi a credibilidade de Cristo, mas a credibilidade dos Doutores da Lei farisaicos.
É por isso que o Tribunal da Relação do Porto não tem pressa nenhuma em fazer-me cumprir qualquer pena. Nestes casos, em que a justiça é utilizada como um disfarce para a perseguição política (ou religiosa), a verdadeira pena está no processo, não na condenação. A condenação é só para inglês ver.
A pena está em fazer-me percorrer o labirinto legal a que fiz referência nos posts anteriores, e fazer-me gastar tempo e dinheiro em recursos e mais recursos. Por isso, como referi num post anterior (cf. aqui), o Tribunal da Relação do Porto desenhou a pena desde o início por forma a dificultar-me ao máximo o recurso para o Supremo.
A morosidade da justiça portuguesa deve-se, em parte, a esta componente do sistema de justiça, que não visa fazer justiça, mas perseguir hereges. Nesta componente, não há interesse na celeridade da justiça, no sentido de produzir sentenças e executar penas. Pelo contrário, o interesse é em prolongar o processo, porque a pena está no processo.
Na verdadeira reforma da justiça que um dia se fará em Portugal, o primeiro código a ser posto em causa - e de uma forma radical - terá de ser o Código do Processo Penal.
O Código do Processo Penal que temos é ainda inquisitorial e uma vergonha para uma sociedade moderna e democrática como Portugal pretende ser.
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