05 março 2019

Neto de Moura e a Liberdade (IV)


(Continuação daqui)

IV. Liberdade de Expressão



Passei o Verão inteiro a hesitar se havia ou não de comentar a sentença do juiz de Matosinhos que me condenou por ofensas à sociedade de advogados Cuatrecasas em Junho.

Evidentemente que se pode criticar as decisões dos juízes, em democracia faz parte do direito à liberdade de expressão. Mas não se deve. Hoje é uma pessoa inocente que critica legitimamente uma decisão injusta que o condenou, aliás num crime de lana-caprina. Mas amanhã aparece em público um hábil burlão qualificado a criticar a sentença de um juiz que justamente o mandou dez anos para a prisão.

A prazo, a crítica pública às decisões dos juízes põe em causa a confiança no sistema de justiça. E quando a confiança no sistema de justiça acaba é a democracia que acaba a seguir. Portugal tem também experiência nesta matéria. A Revolução de 28 de Maio de 1926 que pôs fim à democracia então vigente no país, foi precedida de uma enorme quebra de confiança no sistema de justiça. As democracias morrem pelo sistema de justiça da mesma maneira que o peixe morre pela boca.

Acabei por comentar a sentença do juiz em Setembro (cf. aqui), mas é uma decisão que ainda hoje me pesa na consciência.

Os deputados do Bloco de Esquerda não são conhecidos por terem currículos profissionais impressionantes, e alguns não têm mesmo currículo nenhum. Pelo contrário, um homem que chega a juiz desembargador não é um mero diletante político-partidário, tipo deputado Moisés (cf. aqui). É um homem que estudou, trabalhou e provou o suficiente durante uma vida inteira para atingir o segundo patamar mais elevado da magistratura do país.

Neste ponto, comparando a credibilidade dos deputados do Bloco de Esquerda com a de um juiz desembargador para julgar uma referência à Bíblia contida numa sua sentença, não resisto a contar uma história verídica que me foi relatada por um amigo médico numa consulta a um padre.

A certa altura da consulta, o médico resolveu meter-se com o padre, acerca da liberdade de interpretação da Bíblia que é concedida aos crentes nas religiões cristãs-protestantes, comparada com a obediência que é devida no catolicismo à interpretação oficial da Igreja.

O padre ponderou por uns momentos e com um certo ar de comiseração respondeu:

-Oh doutor, mas o senhor já imaginou o que é a Bíblia a ser interpretada por um matarruano?... 

Mas a verdade é que, à semelhança da liberdade de interpretação da Bíblia que vigora no protestantismo, do qual deriva a democracia, também a democracia concede a qualquer matarruano a liberdade de interpretar as decisões de um juiz.

Criticar as expressões utilizadas por um juiz é uma liberdade que cai dentro da jurisprudência do TEDH, que é uma jurisprudência imensamente liberal. E o juiz deve até estar preparado para ser ofendido no processo, sem que isso constitua trespasse do direito à liberdade de expressão.

Os deputados do Bloco de Esquerda e os seus apaniguados têm todo o direito a ofender o juiz. A questão torna-se mais problemática, porém, quando se pergunta se os deputados do Bloco de Esquerda e seus apaniguados reconhecem aos outros o direito a ofendê-los a eles.

A julgar pela evidência disponível, a resposta é um conclusivo não (cf. aqui) e é neste momento que entramos num terreno movediço onde por detrás da aparente justiça que pretendem fazer sobre o juiz Neto de Moura, aquilo que na realidade fazem é construir um mundo que proclamam ser bom para todos, mas em que a única certeza que existe é que é bastante melhor para eles.

Liberdade de expressão, sim, mas só para eles, e para quem eles autorizarem.

O caso do juiz Neto de Moura põe em evidência um processo que está em curso em que o direito à liberdade de expressão deixará de ser decidido por juízes qualificados - como o juiz Neto de Moura e os seus pares - e passará a ser decidido por um grupo de donzelas ofendidas e de matarruanos ociosos, como parece ser claramente o caso do deputado Moisés (cf. aqui).

Adeus liberdade de expressão.


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