Há quem fale do "realismo católico" para salientar uma das características da cultura dos países influenciados pelo catolicismo, como Portugal. É uma descrição incompleta, porque o catolicismo não é só uma coisa - é cada coisa e a sua oposta, cada uma delas levada ao extremo, e ainda todos os graus intermédios entre os dois extremos.
Significa isto que em Portugal, que é um país imensamente influenciado pelo catolicismo, se podem encontrar as pessoas mais realistas deste mundo, mas também as mais fantasistas, e ainda todos os graus intermédios entre estes dois extremos. A fantasia é uma maneira de desligar o espírito da realidade, e do o libertar. Apropriado seria, portanto, falar do "realismo e fantasismo católicos".
Uma das maneiras da cultura católica exprimir o seu fantasismo é através das anedotas. E eu queria aqui contar uma anedota da minha adolescência. Era uma altura em que os jovens (e os adultos também) se entretinham frequentemente a contar anedotas. Tratava-se de uma forma de entretenimento, que é menos frequente hoje, em parte porque o catolicismo também é hoje menos influente na sociedade portuguesa.
Muitas vezes, as anedotas têm a realidade como inspiração, para logo depois se desligarem dela dando largas à liberdade do espírito e à fantasia. Esta que tenho para contar inspirou-se nas cheias que avassalaram Lisboa em 1967 e que terão causado entre 500 e 700 mortos (cf. aqui). Eu próprio andei com um irmão no meio das águas, eram nove da noite.
Regressávamos de uma classe de ginástica do Benfica que alugava um ginásio à Escola Marquesa de Alorna, ali ao Bairro Azul. A classe terminava às 20:30 e voltávamos para casa pelo trajecto habitual: Metro da estação de S. Sebastião até à Rotunda (hoje Marquês), e depois, da Rotunda até Entrecampos, onde terminava então a linha. De Entrecampos até nossa casa em Alvalade eram cerca de 800 metros, que percorríamos a pé.
Nesse dia, como chovia muito, tínhamos saído de casa com galochas. E foi no regresso, ao emergir da estação do Metro de Entrecampos, que tivemos um dos maiores prazeres da nossa criancice. A água dava-nos pela cintura, fazendo-nos sentir a inutilidade das galochas e o prazer de caminhar sobre as águas como nunca mais viríamos a sentir na vida. Chegámos a casa sem problemas, bastante felizes pela aventura, e só no dia seguinte soubemos da tragédia pelo jornais e a televisão.
Salazar alimentava o mito de que Portugal era um país pobre, talvez para afastar do Estado aqueles que sonhavam aproveitar-se dele. O Estado salazarista era um Estado pequeno (16% do PIB) e pobre. De tal modo que, quando a tragédia ocorreu em Lisboa, e conhecendo a generosidade dos portugueses, rapidamente se gerou uma enorme onda de solidariedade vinda de todas as partes do país, em favor das vítimas das cheias. A maior parte do dinheiro era entregue ao Governo.
Um mês depois, no Palácio de S. Bento, entrou o Cardeal Cerejeira para uma reunião com Salazar. Fecharam-se os dois no gabinete deste último e ali permaneceram durante horas.
Estranhando a demora, o porteiro aproximou-se do gabinete e começou e ouviu a voz de Salazar: "Para mim...para ti...para as vítimas... Para mim...para ti...para as vítimas...". E o porteiro ali ficou intrigado, sempre a ouvir "Para mim...para ti...para as vítimas... Para mim...para ti...para as vítimas...".
Até que resolveu espreitar pelo buraco da fechadura e deparou-se com um espectáculo inusitado. Um montão de notas em cima da mesa, Salazar sentado de um lado, o Cardeal Cerejeira do outro. O porteiro não conseguia acreditar no que via.
Salazar tirava uma nota da mesa, metia-a no bolso, e dizia "Para mim...". Depois, tirava outra nota, dava-a ao Cardeal Cerejeira, que a metia no bolso, e dizia: "...Para ti..."; e, finalmente, fazia um manguito e dizia "...Para as vítimas..."
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