III. Pandemónio
Durante trinta ou quarenta segundos, ficámos todos suspensos do magistrado X, que dava voltas à cabeça à procura de mais uma pergunta - a última - que tinha para fazer àquela testemunha.
O magistrado X estava obviamente exausto nesse final de tarde do dia 4 de Abril, era a quarta sessão do meu julgamento. Acabou por desistir e ceder a palavra ao juiz, que deu a sessão por encerrada.
O interrogatório tinha durado toda a tarde e acabaria por se revelar o mais longo e exaustivo de todo o julgamento. No banco das testemunhas estivera o director dos escritórios do Porto da sociedade de Advogados Cuatrecasas, Filipe Avides Moreira.
Era uma grande ironia: o acusador público fazia o mais denso e extensivo interrogatório de todo o julgamento ao principal acusador privado - o director da Cuatrecasas. Ao réu, pelo contrário, limitara-se a colocar uma só questão, logo na sessão inicial.
Avides Moreira, como director da Cutrecasas, era também acusador mas, nesta qualidade, estava representado pelo advogados Adriano e Ricardo Encarnação. Ele agora depunha como testemunha e sob juramento. Neste julgamento, os advogados-acusadores tinham tido uma enorme capacidade para se multiplicarem também como testemunhas.
Desde há semanas que eu vinha dando sinais neste blogue de que a probabilidade crescia a cada sessão de que os acusadores viessem a sair dali arguidos por algum crime - o de litigância de má-fé era o mais óbvio, mas havia outros ligados ao boicote de uma obra de interesse público e que prolongava a situação de maus tratos às crianças internadas naquelas condições.
Esta convicção tinha sido, em primeiro lugar, o resultado do trabalho profissional, fulgurante e certeiro do magistrado X, o qual, desde cedo, pôs a marosca a descoberto. A Cuatrecasas produzira aquele documento com o objectivo de boicotar a obra o Joãozinho, e o meu comentário televisivo estava perfeitamente justificado.
As testemunhas de acusação sentavam-se agora no banco das testemunhas como se fossem réus, e vinham era preocupadas em se defender, mais do que em acusar. Esta atitude defensiva - onde já valia tudo para cada um salvar a sua própria pele - atingiu o auge com o director da Cuatrecasas, sob interrogatório do magistrado X. Quem havia de ser?
Violando a confidencialidade que o cliente espera do seu advogado, Avides Moreira leu em tribunal um e-mail do administrador do HSJ Amaro Ferreira, que lhe fora dirigido em finais de Junho e em que aquele dizia que o HSJ estava em situação de "ruptura iminente" com a Associação Joãozinho.
Ora, nessa altura eu já tinha produzido o meu comentário televisivo (25 de Maio), e a Associação Joãozinho estava a negociar com a administração do HSJ a alteração das cláusulas inaceitáveis que o documento elaborado pela Cuatrecasas continha, a fim de poder recomeçar a obra.
Ruptura iminente!? A administração do HSJ estava a romper com a Associação Joãozinho sem nunca a ter informado, e em lugar disso confidenciava os seus propósitos à sua assessora jurídica Cuatrecasas?
O objectivo desta revelação era bem claro. Era o de transmitir ao tribunal que, se alguém queria boicotar a obra do Joãozinho rompendo com a Associação, era a administração do HSJ, não a Cuatrecasas (*).
A Cuatrecasas, para se defender, não hesitava em incriminar o seu próprio cliente. Era algo que, até aí, eu só conhecia dos livros policiais. Quando as associações de malfeitores são apanhadas, os malfeitores acabam sempre da mesma maneira - a incriminarem-se uns aos outros.
No dia seguinte, eu estava a escrever um post no Portugal Contemporâneo com o sugestivo título de "a bomba" (cf. aqui).
Quando saí da sala de audiências nesse dia, eu estava, em parte estupefacto, em parte exultante. O que é que faltava mais para que o Ministério Público, na pessoa do magistrado X, constituísse arguidos a administração do HSJ e a Cuatrecasas? Afinal, tinha sido o próprio magistrado X a pôr tudo a nu...
O juiz marcou a sessão seguinte do julgamento - a quinta - para o dia 4 de Maio, exactamente um mês depois. Nunca deve ter existido réu que desejasse tanto voltar a sentar-se rapidamente no banco dos réus - e que esse mês passasse tão depressa quanto possível.
Naquele momento, porém, eu não podia imaginar que o mês que se iria seguir seria o de um verdadeiro pandemónio. Não dentro da sala de audiências. Mas fora dela. E um mês de grandes mistérios, entre os quais o Grande Mistério:
-Por que é que o magistrado X não compareceu à 5ª sessão do meu julgamento?
(Continua)
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(*) Este e-mail, que seria central para a minha absolvição e para a constituição dos acusadores como arguidos, acabou, afinal, a ser central para a minha condenação, porque o juiz lhe deu uma interpretação diferente. A seguinte: aquilo que o e-mail revela é que era a administração do HSJ que queria boicotar a obra. A Cuatrecasas limitou-se a executar a vontade do seu cliente, elaborando um documento que, de facto, a boicotava.
Daí que na sentença se refira que os advogados agem sempre na defesa dos interesses dos seus clientes "sejam interesses legítimos ou ilegítimos, morais ou imorais" (cf. aqui). E eu acabei condenado porque o juiz entendeu que a Cuatrecasas, ao fazer aquele documento que paralisava a obra, agiu de acordo com os interesses do seu cliente HSJ, uma relação de lealdade que é proibido pôr em causa.
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