27 agosto 2017

cinco milhões

O Eng. Gouveia Capelão é uma pessoa de tal modo delicada e eu tinha estabelecido com ele uma relação de trabalho de tal modo agradável que, ainda hoje, passados dois anos e meio,  não consigo ter o mínimo ressentimento em relação a ele. Nem contra a Teixeira Duarte que é uma das nossas maiores e mais reputadas empresas do sector da construção.

Ao longo dos últimos quatro meses eu sentia que tinha envolvido o Eng. Capelão emocionalmente naquela obra, como conseguia envolver toda a gente com quem falava acerca dela. Não era uma obra normal. Era uma obra que tanto eu como ele sentíamos orgulho em fazer, e que tínhamos de fazer.

As condições especiais em que aquela obra seria feita seriam também a contribuição mecenática da Teixeira Duarte para com o seu grande e fiel cliente - o Hospital de S. João. A tal ponto - gracejava eu às vezes com o Eng. Capelão - que no sector da construção se falava no Hospital de S. João como sendo uma quinta da Teixeira Duarte.

Faltavam cerca de dez dias para a cerimónia do lançamento da primeira pedra e, um pouco antes das onze da manhã desse dia, eu chegava ao Lagoas Park, em Oeiras, indo do Porto para mais uma reunião com o Eng. Capelão a fim de acertar os últimos pormenores para o início da obra, que estava iminente.

Entrei para aquela grande sala de reuniões que eu já conhecia e fiquei a contemplar a paisagem pela janela enquanto esperava pelo Eng. Capelão. Esperei mais do que era habitual. Até que ele entrou na sala, cumprimentámo-nos, sentou-se na parte lateral da grande mesa, e eu, em frente, do outro lado. Foi então que, com um ar obviamente consternado, me disse:

-Professor Pedro Arroja ... lamento informá-lo... mas a Teixeira Duarte não fará a obra sem que nos apresente uma garantia de cinco milhões de euros...

Fiquei sem pinga de sangue. Protestei energicamente. A Teixeira Duarte sabia - porque era uma das condições do concurso -, que a Associação não tinha garantias para dar. Andávamos a trabalhar há quatro meses e nunca isso foi levantado, nem poderia ser, porque era matéria assente entre as duas partes. Era agora, a dez dias da cerimónia do lançamento da primeira-pedra, com a presença do primeiro-ministro já confirmada, que me vinha impor aquela condição que ele sabia que eu não poderia cumprir?

Depois de mais alguma troca de palavras, levantei-me e encaminhei-me para  a porta. Ele acompanhou-me. Antes de sair ainda me virei para ele e perguntei:

-A Teixeira Duarte não estará sequer presente na cerimónia do lançamento da primeira-pedra?...

Ele baixou os olhos e respondeu:

-Não...

Saí dali atordoado, como se me tivessem dado uma grande pancada na cabeça. Dez dias depois, no salão nobre do Hospital de S. João, realizar-se-ia a cerimónia de lançamento da primeira-pedra da obra do Joãozinho. A sala iria estar cheia. Iriam estar presentes o primeiro-ministro, o presidente da Câmara do Porto, o secretário de estado da saúde, o bispo do Porto, o presidente do HSJ. Iriam estar presentes muitas pessoas e muitas instituições. Só faltaria a principal - a construtora para fazer a obra.

Quando, na cerimónia, me perguntassem qual era a construtora, o que é que eu iria responder?

Que vergonha... Era o descrédito total, -  meu, da Associação Joãozinho, do próprio Projecto do Joãozinho...

Nessa tarde conduzi de volta ao Porto profundamente angustiado, até o carro parecia não querer andar. Ao longo do caminho não consegui encontrar uma saída - uma única luz que fosse e me acalentasse. Onde é que, em dez dias, eu iria arranjar uma garantia de cinco milhões de euros, ou uma construtora que me fizesse a obra nas condições especiais que, desde há quatro meses, eu vinha a negociar com a Teixeira Duarte?

Nessa noite não consegui dormir. Pela primeira vez em treze meses, o Joãozinho tirou-me o sono.No dia seguinte, às sete e meia da manhã já estava no meu escritório, à espera que as pessoas chegassem aos empregos. Tinha dois telefonemas a fazer.

Pelas dez, falei ao director da Lucios que me tinha ido pedir para a empresa se apresentar ao concurso, mesmo não tendo sido convidada. Eu tinha gostado da atitude daquela empresa, chegando-se espontaneamente à frente numa obra mecenática e ombreando com as grandes. Ainda por cima, estava ali mesmo à mão, a sede era na Maia.

Disse-lhe que precisava de falar urgentemente com ele. Respondeu-me que estava numa reunião, ali a trezentos metros do meu escritório e que dentro de uma hora estaria comigo.

Quando chegou, expus-lhe a situação e contei-lhe a história da Teixeira Duarte. Estaria a Lucios ainda disponível para fazer a obra? Respondeu-me que o Eng. Filipe Azevedo, que era o dono da empresa, estava em França a acompanhar trabalhos que a empresa tinha lá, mas que até ao final do dia me daria uma resposta.

Disse-lhe que, por uma questão de segurança - faltava apenas pouco mais de uma semana para o lançamento da primeira-pedra - iria também falar ao Eng. Rui Vieira de Sá, da Somague, que me tinha recebido muito bem e que tinha grande apreço pela obra do Joãozinho.

Respondeu-me que o fizesse. Por acaso, - acrescentou - a Lucios e a Somague até tinham um consórcio em Moçambique que estava a funcionar muito bem.

Pouco depois estava a falar para a Somague. O Eng. Vieira de Sá ouviu-me em silêncio do outro lado da linha, e no fim respondeu-me:

-Pode contar connosco!...

Pu-lo ao corrente da minha conversa com a Lucios e ele disse-me que não via inconveniente nenhum.

Ao final do dia, recebi um e-mail da Lucios: "O Eng. Filipe Azevedo manda dizer que, sozinhos ou em consórcio, faremos a obra".

Se Deus não estava comigo, não sei quem poderia estar.

Nessa noite, em casa, sentei-me à secretária, e enviei um e-mail à administração do HSJ a informar do que se tinha passado, antes de me deitar e adormecer profundamente: A Teixeira Duarte, à última da hora, tinha-me exigido uma garantia de cinco milhões de euros. Mas o problema já estava resolvido. A ala pediátrica do HSJ seria construída pelo consórcio Lucios-Somague.

Eu não fazia ideia na altura de que naquela mensagem só estava a dar à administração do HSJ meia-novidade. Como viria a concluir mais tarde, sem margem para erro, a exigência da Teixeira Duarte tinha partido da administração do seu grande e fiel cliente - o Hospital de S. João.

É que, a partir daquele dia, e até ao final do ano, eu iria passar a gastar mais de metade do meu tempo a lidar com os obstáculos que, uns atrás dos outros, a administração do Hospital de S. João iria colocar no caminho da obra. Um deles acabaria por me valer um processo-crime na Justiça.

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