13 dezembro 2007

poder, apenas poder

1. Admitamos que, como diz o Corcunda, a «Fé Cristã» prevalecia como princípio moral e político na ordenação do mundo medieval. E que, mesmo até, nesse mundo, a soberania não existia, porque o governo local se pressupunha em «comunidade no seio espiritual da Igreja». Como justifica ele, então, a separação entre o regnum e o sacerdocium, isto é, entre o Imperador e o Papado? E para que serviam os esforços dos canonistas, como Egídio Romano, para justificar a supremacia do poder absoluto do Papa desde logo sobre o Imperador? O Corcunda conhece certamente os esforços de Inocêncio III para impor o seu poder ao do Imperador. Ou os de Inocêncio IV, que procurou agradar ao Rei dos Francos e aos príncipes alemães para diminuir o poder de Frederico (que, aliás, excomungou). Mais tarde, os fundamentos que invocara em favor dos seus súbditos, acabariam por se virar contra o papado, em favor dos reis que emergiam nos novos Estados em formação. E, também aqui, as relações de poder entre as duas partes – a Igreja e o Estado, o Papa e os Reis – foram tudo menos pacíficas. A História de Portugal está cheia de episódios que relatam esses conflitos: a excomunhão de Afonso II por Honório III, devido a questões comezinhas do «vil metal»; a excomunhão de Sancho II por Inocêncio IV, considerado «rex innutilis» pelo Papa, por supostamente não saber administrar a justiça no reino, mas, segundo parece, por razões bem mais prosaicas de politica interna; a excomunhão de Afonso III decretada por Gregório X, por aquele ter feito frente aos bispos portugueses proibindo-os de cobrar o dízimo; o Beneplácito Régio de Pedro I; etc.. No âmbito do Direito, a preferência do Direito Romano sobre o Direito Canónico, e do ius proprium sobre o ius commune, remetido este para direito subsidiário daquele, e incorporando os direitos nacionais o essencial do Corpus Iuris Civilis. Aliás, por esta altura, já o dogma do Papa como o «pai da cristandade» fora arrasado por Filipe IV, o Belo, e pelo seu original papado de Avinhão. Na verdade, caro Corcunda, se o Papa procurou tomar para a sua mão os dois gládios, e se chegou momentaneamente a consegui-lo, o poder profano, assim que teve oportunidade, retirou-lhe o que lhe não pertencia e, mesmo até, o que até deveria ser seu. No fim de contas, em qualquer das circunstâncias, seja nas relações entre o Papa e o Imperador, entre este e os Reis, e destes últimos com o Papa, foram sempre disputas de poder que estiveram em causa. Política, apenas.

2. E só por maldade congénita pode o Corcunda considerar Rousseau um inspirador do Liberalismo Clássico. Ele sabe bem que nenhum liberal o tem nessa conta, e que os principais autores do liberalismo clássico refutam a sua putativa influência. Como ele sabe, também, que em circunstância alguma um liberal defende a soberania ilimitada do Estado, seja qual for a sua origem ou «legitimidade». Para o liberalismo, nenhuma soberania ilimitada é legítima, ainda que decretada pelo sufrágio universal. Nós mesmos, aqui no Portugal Contemporâneo, temos vindo a assinalar reiteradamente as limitações naturais que a regra democrática deve conhecer numa sociedade livre, bem como temos escrito que a sua transformação em fim legitimador do poder político, em vez de permanecer como método legitimador dos governantes, conduziu às democracias totalitárias em que vivemos. A herança de Rousseau poderá, portanto, caber em muitos lados, mesmo até num certo liberalismo racionalista francês, que certamente terá inspirado. No liberalismo clássico, seguramente que não. Estas duas tradições encontram-se muito bem demarcadas. Entre nós, por exemplo, por José Manuel Moreira, que estudou e que escreveu abundamente sobre o assunto.

3. Não quero deixar de assinalar que o Modernista, no excelente «post» que aqui editou, colocou um conjunto de questões sobre as quais os liberais deveriam pensar e para as quais deveriam procurar respostas. Por mim, que não tenho a veleidade de as pretender conhecer a todas, não gostaria de deixar de dizer-lhe, por ora, que partilho da crítica de Hayek ao utilitarismo, que ele considera uma forma de construtivismo normativo, seja ele particularista (de acto), à Bentham, ou genérico (de regra), à Paley. Em ambos os casos, o problema é epistemológico: não podemos prever cabalmente os efeitos particulares das nossas acções. É exactamente por essa razão que existem normas de conduta: não por sermos capazes de prever as consequências de uma acção particular, mas precisamente pela razão inversa. É nesse contexto que me situo e é por essa mesma razão que, embora a saiba falível como qualquer outro sistema de interacção, me parece que a catalaxia, ou a ordem de mercado, poderá permitir que se encontrem melhores soluções para a generalidade dos nossos problemas, do que qualquer outro sistema onde operem intermediários. Voltarei, mais tarde, a algumas das questões levantadas pelo Modernista, não exactamente para as tentar «esclarecer», mas para as procurar compreender e interpretar à luz do liberalismo, tal como o vou concebendo.

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