09 junho 2022

A jurisprudência da porca e do burro

Excertos do acórdão do Tribunal da Relação de Évora relativo ao caso que esta semana levou à condenação de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. aqui). (Subtítulos meus)


1) A porca era loira

 "No que concerne à identificação da pessoa que se encontra retratada nos cartoons pela figura de uma porca loira importa desde logo esclarecer que nenhum dos arguidos admitiu tratar-se da assistente."

2) A porca loira, dizem os arguidos, era a filha do Presidente da Câmara

"Com efeito, todos os arguidos afirmaram que a porca loira que se encontra sempre desenhada nos cartoons junto ao burro retrata a filha do Presidente de Câmara"

3) A porca  era uma figura de relevo no executivo camarário

"Por último importa dizer que a figura da porca é sempre evidenciada em relação aos demais porcos ali retratados, uma vez que a imagem destes é sempre idêntica entre si, o que impede a identificação destes últimos; o que nos leva a concluir que a porca, apesar de não ser a principal visada nos cartoons, era uma figura de relevo no executivo camarário, como é o caso da Assistente."

4) A porca e o burro andavam no truca-truca porque, num caso, o burro toca no traseiro da porca e, no outro, a porca, que está nua e de gatas, espera que o burro, que está com as calças em baixo, lhe espete a seringa no traseiro [É a chamada picada de enfermeiro, cf. aqui]

"Ora, como acima já adiantámos, a nosso ver, efectivamente os desenhos em causa sugerem, de uma forma geral, a existência de uma intimidade sexual entre a figura da porca e o burro, ou seja, entre a assistente e o Presidente da Câmara e tal sugestão é particularmente expressiva em dois cartoons, a saber: o cartoon de fls. 20 (onde se vê o burro a dar tocar no traseiro da porca, enquanto esta corre numa passadeira,); e o cartoon de fls. 72 (onde a figura da porca, que está nua e de gatas, aguarda que a figura do burro, que está de calças baixas, lhe espete uma seringa no traseiro); ora, qualquer um destes cartoons insinua, de forma clara e vincada, a existência de uma intimidade física e sexual entre as duas figuras, sendo esta a única interpretação possível para qualquer português médio que seja convidado a interpretar tais desenhos."

5) A porca usava meias de renda, cinto de ligas e sapatos de salto alto

"Saliente-se ainda que a proximidade física entre as duas figuras (a porca e o burro) é uma constante em todos os cartoons, sendo que em muitos deles a porca se encontra caracterizada com meias de renda pretas, cinto de ligas e sapatos de salto, o que também reforça a sugestão de que existe uma intimidade sexual entre a figura da porca e a figura do burro".

6) Numa sociedade de tradição católica, como a portuguesa, uma porca naqueles preparos corresponde a uma mulher de má porte.

"Noutra perspectiva importa ainda dizer que a caracterização da figura da porca (quando colocada com meias de renda, cintos de ligas e saltos altos) também tem uma conotação pejorativa relativamente à assistente, na medida em que, a linguagem visual é, muitas vezes, densificada pela utilização de símbolos sociais e culturais, facilmente perceptíveis para qualquer intérprete. E para qualquer intérprete médio que viva numa sociedade ocidental e tradicionalmente católica (como é o caso da sociedade portuguesa), a imagem de uma figura feminina com o peito desnudado, meias de renda pretas, cinto de ligas e saltos altos tem claramente um sentido sexual, correspondendo tal imagem a uma mulher de má porte."

7) Fica a ressalva que mesmo as mulheres que usam meias de renda, cinto de ligas e saltos altos ainda não comparecem a actos públicos de peito desnudado:

"E não se diga que os actuais usos, modas e trajes femininos já ultrapassaram tal simbolismo, na medida em que muitas mulheres utilizam meias de renda, saltos e cinto de ligas, sem que isso as prejudique do ponto de vista moral ou social (se bem que não comparecem em actos públicos com o peito desnudado); é que in casu não estamos no plano da moda, estamos, isso sim, no plano da linguagem visual – onde a única forma de identificar uma mulher de má porte é através da utilização destes símbolos e clichés, ou seja, através da caracterização da imagem feminina com meias de renda, cinto de ligas e salto alto".


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