09 junho 2022

Provincianismo judicial

Num post anterior referi que um dos males da justiça portuguesa é a sua cultura provinciana, querendo significar com isso a cultura própria de uma comunidade pequena e fechada, geralmente pobre, onde todos se conhecem, a comunidade cara-a-cara, feita de honras e autoridades pessoais, mas também de rivalidades e ódios, às vezes ancestrais.

Esta cultura opõe-se à cultura própria da sociedade grande e aberta, de que falava Karl Popper no seu clássico "A sociedade aberta e os seus inimigos", onde cada um prossegue  os seus fins de vida, irrespectivamente do que faz o vizinho, governada por processos impessoais (como o mercado e a democracia política) e onde o valor da liberdade pessoal se sobrepõe ao da autoridade.

O acórdão do Tribunal da Relação de Évora (cf. aqui) relativo ao caso que esta semana levou à condenação de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. aqui) é o exemplo acabado dessa cultura provinciana da justiça portuguesa.

O cenário é a pequena cidade alentejana de Elvas, onde todos se conhecem e onde às rivalidades e ódios pessoais, às vezes ancestrais, a democracia veio acrescentar as rivalidades e os ódios políticos. Neste ambiente, o inesperado acontece e ganha uma dimensão extraordinária. Um punhado de cartoons que teriam passado despercebidos em qualquer grande cidade tornam-se um assunto de Estado, que mobiliza a máquina estatal da justiça durante 15 anos, desde 2007 até ao seu triste fim aos pés do TEDH esta semana.

A máquina do Estado é mobilizada para identificar os autores dos cartoons e quem os reproduziu, saber quais as intenções  dos autores, e quais as pessoas que eles pretendiam visar. O burro era inquestionavelmente o presidente da Câmara, mais difícil foi chegar à porca. 

Os arguidos diziam que a porca era a filha do presidente da Câmara. Mas como os cartoons sugeriam a existência de relações sexuais entre o burro e a porca, e como era pouco provável que o presidente da Câmara tivesse relações com a própria filha, o Tribunal chegou à conclusão que era pouco credível que a porca fosse a filha do presidente. Mais provável é que a porca - que se apresentava de meias de renda, cinta de liga, sapatos altos, e peito desnudado - fosse a vereadora, braço-direito do presidente, que era também a queixosa ou assistente no processo.

Todo o acórdão gira depois em torno da honra do presidente da Câmara e, sobretudo, da honra da sua vereadora porque desonrar uma mulher é, obviamente, um crime muito mais grave do que desonrar um homem. E a honra da mulher acaba a ser medida pelas suas meias, pela cinta e pelo sapato que usa, e se se apresenta ou não em público de peito desnudado.

Há crime, claro que há crime. Não se ofende desta maneira o presidente da Câmara de Elvas e a sua vereadora. Em Elvas, onde escasseiam as oportunidades, é o presidente da Câmara que distribui empregos, prebendas e honrarias, muitas vezes a conselho da vereadora, que é também o seu braço-direito. Em Elvas, o presidente da Câmara e a sua vereadora são o rei e a rainha. Ora, toda a gente sabe que é crime ofender a realeza.

Fica-se com quase-certeza que, se os ofendidos tivessem sido dois cidadãos anónimos de Elvas, o caso não teria sido aceite em tribunal. Porém tratando-se de duas autoridades locais, como o presidente da Câmara e a vereadora, os prevaricadores não podiam deixar de ser punidos.

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