05 maio 2021

Marçanos da judicatura (XV)

 (Continuação daqui)


XV. Pura magia


A resposta do Tribunal Constitucional à pretensão do cidadão A é o momento que melhor ilustra a cultura trapaceira que vigora neste Tribunal.

Vale a pena reiterar a pretensão. Sobre a mesma norma (Lei 20/2013) existiam agora dois acórdãos (31/2020 e 646/2020), de duas secções diferentes (2ª e 3ª, respectivamente) que se pronunciavam de forma divergente quanto à sua inconstitucionalidade . Ao abrigo do artº 79º-D, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, o cidadão A pedia que o acórdão 646/2020 fosse levado ao plenário deste Tribunal.

A resposta veio num despacho de Dezembro de 2020 assinado pela relatora do acórdão 646/2020, a "juíza" Maria José Rangel de Mesquita, e indeferia o pedido do cidadão A.

A justificação dada pela "juíza" Rangel de Mesquita foi a seguinte:

Como o Ministério Público tinha recorrido do acórdão 31/2020 para o plenário, e como o plenário ainda não o tinha apreciado, a decisão contida neste acórdão ainda não tinha transitado em julgado e, portanto, não era válida. Consequentemente, não havia oposição nenhuma entre este acórdão e o acórdão 646/2020.

O cidadão A ficou para morrer.

Por outras palavras, como ainda não foi confirmado pelo  plenário, o acórdão 31/2020, pura e simplesmente, não existe. Segue-se que não há qualquer divergência entre ele e o acórdão 646/2020.

É pura magia. Com um estalar de dedos, o acórdão 31/2020 desapareceu do mapa.

Esta é a pior forma de corrupção da justiça porque é a corrupção da razão. Deixou de ser possível olhar racionalmente para as leis e esperar dos tribunais uma interpretação racional das leis. A racionalidade é substituída pela arbitrariedade e o exemplo vem do mais alto Tribunal do país - o Tribunal Constitucional. Não se pode esperar muito diferente dos outros.

A Lei diz uma coisa, mas quando o cidadão utiliza a letra da Lei para exercer os seus direitos, o Tribunal Constitucional sai de lá com uma nova versão da Lei, feita por ele e que só ele conhece, que o cidadão não podia legitimamente esperar que existisse, e que lhe inviabiliza o exercício dos direitos.

Mais uma vez,  aquilo que o Tribunal Constitucional fez, pela pena da juíza Rangel de Mesquita foi reescrever a Lei, agora o artº 79º-D, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional. 

A Lei diz:

"1. Se o Tribunal Constitucional vier a julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso  para o plenário do Tribunal, obrigatório para o Ministério Público quando intervier no processo como recorrente ou recorrido"  (cf. aqui).

Agora, passou a dizer:

"1. Se o Tribunal Constitucional vier a julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso  para o plenário do Tribunal, obrigatório para o Ministério Público quando intervier no processo como recorrente ou recorrido, e desde que a primeira das duas decisões divergentes tenha transitado em julgado em plenário do Tribunal" .

Ora, esta última parte não está na Lei. É pura batota. 

E é dupla batota. Porque não se trata sequer de negar ao cidadão A o direito que lhe assiste de recorrer para o plenário por se sentir prejudicado - na realidade, discriminado - na decisão do acórdão 646/2020 face àquela que foi dada aos guardas da GNR no acórdão 31/2020. O recurso é obrigatório, como impõe a lei, e devia ser o Ministério Público a tomar  a iniciativa de enviar o acórdão 646/2020 para o plenário porque é nele recorrido. Mas esperar que o Ministério Público, que é o acusador do cidadão A, fizesse isso seria talvez esperar demais.

Aquilo que mais impressiona no despacho da "juíza" Rangel de Mesquita é que ela tem um argumento pretensamente racional para justificar a batota - o de que, para efeitos práticos, o acórdão 31/2020 não existe - exactamente da mesma maneira que qualquer vulgar criminoso tem sempre uma "razão" para justificar os seus actos.

(Continua) 

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