07 março 2021

Programa do Chega (XII)

 (Continuação daqui)


XII. O liberalismo possível


No post anterior (cf. aqui), referi que o Chega é, dentre todos os partidos, aquele cujo programa (cf. aqui) mais se ajusta à cultura (católica) dos portugueses, e essa é, provavelmente, uma das razões que explicam o seu sucesso fulgurante.

O Chega reclama-se como um partido conservador e liberal, mas o liberalismo do Chega não é o liberalismo clássico ou anglo-saxónico que está presente, por exemplo, no programa da Iniciativa Liberal, mas um liberalismo mitigado, a que se poderia chamar um "liberalismo católico". O liberalismo do Chega é o liberalismo possível para um país de tradição católica.

São várias as instâncias em que o programa do Chega se afasta do liberalismo clássico, e se afirma decididamente católico, e algumas já foram referidas anteriormente. 

Neste post pretendo ilustrar a diferença entre o Chega e o liberalismo clássico por referência à célula fundamental da sociedade que, para o liberalismo clássico, é o indivíduo, enquanto que para o Chega, como para o catolicismo, é a família.

O liberalismo clássico, tendo nascido do protestantismo, não contestou apenas a Igreja, uma palavra que, do grego ecclesia, significa "comunidade". O liberalismo contestou todas as formas de comunidade, a começar pela família.

Todas as formas de comunidade, com início na família e seguindo pela corporação, pela Igreja e pelo Estado impõem limitações ao indivíduo e à sua liberdade de escolha. O liberalismo é, em primeiro lugar, uma revolta do indivíduo contra qualquer forma de comunidade e as limitações que ela impõe à acção individual. 

Na realidade, quem percorrer a biografia de alguns dos grandes autores liberais clássicos não encontra grandes exemplos de homens de família. David Hume e Adam Smith, dois dos grandes liberais clássicos, eram homossexuais, e viveram uma relação até à morte do primeiro. 

Mais recentemente, os exemplos não são muito mais impressivos em abono da família. Ludwig von Mises viveu muitos anos com Margit von Mises mas só se casou com ela no final da vida. Não tiveram filhos. E o mais célebre liberal da modernidade, Friedrich Hayek, abandonou a família em Londres (mulher e dois filhos) e foi viver com uma namorada da adolescência para os EUA. O conhecido economista Lionel Robbins, que havia recebido a família Hayek em Londres, quando esta imigrara da Áustria, nunca lhe perdoou.

É claro que a emancipação do indivíduo em relação à comunidade, que é típica do liberalismo, tem as suas vantagens e os seus inconvenientes, face à forte tradição familiar dos países católicos, como Portugal. Enquanto, nos países de tradição protestante e liberal, os jovens saem de casa aos 18 anos para se tornarem independentes, nos países católicos, como Portugal, metade dos "jovens" até aos 35 anos de idade ainda vivem em casa dos pais (cf. aqui).

Esta dependência tardia em relação à família é, aliás, uma das razões por que os países católicos tendem mais facilmente para o socialismo do que para o liberalismo. Quem, aos 35 anos de idade, com o aproximar da morte dos pais, ainda não se habituou a viver pelos seus próprios meios, não é nessa idade que o vai fazer. Aquilo que vai fazer é reclamar que apareça alguém que substitua os pais e que lhe permita continuar a viver sem esforço. Ora, o socialismo oferece-lhe a solução de mão-beijada - o Estado.

O programa do Chega encoraja fortemente a independência do indivíduo face ao Estado, reservando os apoios estatais somente como última instância para aqueles que, de todo em todo, não disponham de meios de vida ou de condições para os obter. Mas não vai ao ponto de tornar o indivíduo, desligado da família e de outras formas de comunidade, o actor principal da sociedade.

Nesta matéria, o Chega segue, não o liberalismo clássico, mas a Igreja Católica que considera que um homem (ou uma mulher) sozinho não produz nada de valioso. É necessário uma comunidade - pelo menos a mais elementar das comunidades, que é a de um homem e uma mulher, uma família - para que um homem (ou uma mulher) possa produzir alguma coisa que valha a pena.

O indivíduo, de que fala o liberalismo clássico, não é um produto de si próprio, mas de uma comunidade - a família. Por isso, o programa do Chega vai ao ponto de recomendar a criação de um Ministério da Família.

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