(Continuação daqui)
III. Duas legalidades
É a seguinte a jurisprudência do TEDH sobre a protecção das fontes jornalísticas na parte que é relevante para analisar o caso dos dois jornalistas portugueses que foram postos sob vigilância policial por ordem do Ministério Público.
O direito à protecção das fontes jornalísticas é de tal modo importante para garantir a liberdade de expressão, que o TEDH só admite a interferência com esse direito quando existir um motivo de interesse público que se lhe sobreponha. Esse motivo não pode ser banal. Por isso, o TEDH impõe a si próprio o mais rigoroso escrutínio nesta avaliação (cf. aqui, parág. 315).
Por exemplo, um jornalista reporta credivelmente que no próximo dia 22 às 15 horas está planeado um ataque terrorista num certo bairro de Lisboa com 500 vítimas esperadas. Neste caso, o direito à protecção das fontes que assiste ao jornalista cede perante o interesse público que permita à polícia aceder à fonte da notícia e desmantelar a rede criminosa a tempo de evitar o ataque.
Na realidade, o motivo mais frequentemente invocado perante o TEDH para derrogar o direito à protecção das fontes jornalísticas é a "segurança nacional", seguido da "prevenção da divulgação de informação recebida em confidencialidade". Outros motivos são a "prevenção da desordem", a "prevenção do crime" e a "protecção de direitos de terceiros" (cf. parág. 314).
Para o TEDH, o direito à protecção das fontes jornalísticas é independente de a informação ter sido obtida por meios lícitos ou ilícitos (cf. parág. 317).
Na apreciação de casos relativos ao direito à protecção de fontes jornalísticas o TEDH invoca frequentemente a Recomendação R (2000) 7 do Conselho da Europa (cf. aqui) sobre o direito dos jornalistas a não revelarem as suas fontes (parág. 318).
Num caso em que jornalistas foram postos sob vigilância, o TEDH notou em primeiro lugar que essa decisão não tinha sido avaliada por uma entidade independente (v.g. juiz) com capacidade para a impedir ou a terminar. A avaliação post factum não era suficiente. O TEDH acabou a condenar o Estado-membro (Holanda), não apenas por violação do artº 10º da CEDH (direito à liberdade de expressão), mas também por violação do artº 6º (direito à vida privada e familiar) (cf. parág. 326)
Tendo em conta a importância do princípio da protecção das fontes para a liberdade de expressão, qualquer interferência com esse princípio tem de estar escudada, segundo o TEDH, em salvaguardas igualmente importantes (cf. parág. 329)
A primeira e a mais importante dessas salvaguardas é a garantia da sua autorização e acompanhamento por um juiz ou por uma outra entidade que seja independente e imparcial (cf. parág. 330).
Em suma, para que a vigilância a jornalistas com o propósito de chegar às suas fontes seja legal, é necessário que ela passe, pelo menos, dois critérios decisivos. Primeiro, tem de estar assente num interesse público relevante. Segundo, tem de ser autorizada a priori por um juiz (ou outra entidade imparcial e independente) e acompanhada por ele.
No caso envolvendo o Ministério Público nem o motivo para violar o direito dos jornalistas à protecção das suas fontes é de interesse público relevante - assunto que trato no post seguinte -, nem houve autorização e acompanhamento por um juiz.
A procuradora Fernanda Pêgo, chefe da procuradora Andrea Marques que conduziu o processo, diz que foi "tudo legal, tudo legal" (cf. aqui). O Ministério Público no seu comunicado afirma o mesmo dizendo que não era necessária autorização de um juiz e que o processo decorreu "com respeito pela legalidade" (cf. aqui).
Parece que estamos perante duas legalidades. E, na realidade, estamos. Uma é a legalidade democrática da CEDH e da jurisprudência do TEDH. Outra é a legalidade inquisitorial (alguns diriam, fascista) do Código do Processo Penal e do Ministério Público.
(Continua)
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