15 dezembro 2020

O direito ao recurso (I)

 


I. Outros deixaram de o ter

O economista Ludwig von Mises costumava dizer que, quando o Estado se propunha atingir um certo fim, aquilo que acabava por fazer era normalmente realizar o fim oposto. 

Nesta versão radical da teoria dos efeitos não-pretendidos, agora que o Estado anda a tentar salvar a TAP, aquilo que mais provavelmente vai acontecer é que ele acabe com a TAP. E, quando em 1982, o Estado criou o Tribunal Constitucional para fazer respeitar a Constituição e os direitos constitucionais dos cidadãos, diria von Mises que o resultado, a prazo, só poderá ser o desrespeito da Constituição e dos direitos constitucionais dos cidadãos.

Von Mises ficaria encantado com o exemplo que eu tenho para apresentar relativo a um direito constitucional a que tenho vindo a fazer referência recorrente neste blogue ao longo das últimas semanas. Refiro-me ao direito ao recurso previsto no artº 32º, nº 1, da Constituição (cf. aqui).

Este artigo constitui uma defesa dos cidadãos contra os erros judiciais e, sobretudo, contra a perseguição política feita através do sistema de justiça, de que Portugal tem uma infeliz tradição. Ele visa assegurar que nenhum cidadão é condenado sem que, pelo menos, duas instâncias jurisdicionais (isto é, dois tribunais de nível diferente) confirmem a condenação. 

Por outras palavras, a condenação só se torna efectiva depois de um tribunal ter condenado e outro tribunal superior ter confirmado a condenação, assegurando aquilo que os juristas chamam a "dupla conforme".

Este direito ao recurso é considerado um direito humano fundamental e está previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artº 2º do Protocolo nº7) numa versão aproximada, chamada "direito a um duplo grau de jurisdição" (cf. aqui). 

Convém referir, porém, que, para proteção dos cidadãos, o nosso direito ao recurso, previsto no artº 32º, nº 1, da Constituição é uma garantia ainda mais forte do que o correspondente direito previsto na CEDH e acabado de citar. (O  recurso implica sempre um segundo grau de jurisdição, mas a inversa é que não é verdadeira: pode estar satisfeito o direito a um duplo grau de jurisdição sem que esteja satisfeito o direito ao recurso).

Portanto - caso raro num país que tem uma fraca tradição de proteção dos direitos humanos, como é Portugal -, nesta matéria, a nossa Constituição vai ainda mais longe do que a própria Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Não fosse, obviamente, a teoria dos efeitos não pretendidos, na sua versão mais radical proposta por von Mises -  a saber, tudo aquilo que o Estado faz produz sempre resultados que são exactamente os contrários dos pretendidos.

A Constituição foi aprovada em 1976 e aí foi consagrado o direito ao recurso, "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso" e, por essa altura, não havia dúvida que o direito ao recurso existia em Portugal para todos os portugueses, sem quaisquer restrições.

O Tribunal Constitucional foi criado em 1982. A partir daí - diria von Mises -, é que passará a não ser garantido que os portugueses gozem do direito ao recurso. Na realidade, é bem provável que alguns portugueses deixem de gozar do direito ao recurso, e, a prazo, nenhum português goze de todo do direito ao recurso.

O propósito desta série de posts é precisamente o de inquirir se, em 2020, os portugueses gozam ou não do direito ao recurso. A resposta faria sorrir von Mises. É que Portugal está, neste momento, a meio do processo que, com o tempo, validará a sua tese por completo - a de que nenhum português gozará do direito ao recurso.

A resposta em 2020 é a seguinte. Alguns portugueses ainda têm o direito ao recurso, mas outros deixaram de o ter. E quem tirou o direito ao recurso a estes últimos portugueses foi precisamente o Tribunal Constitucional.   

(Continua)

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