28 novembro 2020

A juíza Rangel (VI)

 (Continuação daqui)

A juíza Rangel, à direita, na companhia dos colegas Fernando Ventura e Fátima Mata Mouros 
(Fonte: Google Imagens)


VI. Às vezes, Deus...

Em 2011, o deputado madeirense José Manuel Coelho envolveu-se numa disputa partidária com o advogado e militante do MRPP, Garcia Pereira, chamando-lhe "agente da CIA".

Como deve ser agora perfeitamente evidente, os juristas são particularmente sensíveis à ofensa, especialmente juízes, advogados e políticos que podem manipular a justiça por dentro, e Garcia Pereira pôs um processo por difamação a Coelho.

Em 2016, o tribunal de primeira instância absolveu José Manuel Coelho ao abrigo da jurisprudência do TEDH e do seu direito à liberdade de expressão. Garcia Pereira recorreu para a Relação de Lisboa.

E agora, em 2017, vai dar-se um fenómeno que também já é familiar aos leitores deste blogue, quando estão envolvidos insiders do sistema de justiça - juízes, advogados ou políticos. O Tribunal da Relação de Lisboa inverte a decisão de primeira instância e, contra a jurisprudência do TEDH, condena Coelho a um ano de prisão (pena a cumprir aos fins de semana, cf. aqui).

Tendo sido absolvido na primeira instância e condenado pela primeira vez na Relação, Coelho tem direito a recorrer para o Supremo, ao abrigo do artigo 32º da Constituição que confere a cada cidadão o direito ao recurso (cf. aqui).

Este direito tem em vista defender o réu contra as condenações arbitrárias e os erros da justiça. É considerado um direito humano fundamental e está também contido na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artº 2º do Protocolo nº 7, anexo à CEDH, sob o título "direito a um duplo grau de jurisdição", cf. aqui).

O direito ao recurso visa assegurar que uma sentença condenatória só se torna efectiva depois de ter sido confirmada por um tribunal superior, assegurando aquilo que na gíria jurídica se chama "dupla conforme". No caso do deputado Coelho, este direito assegura ao deputado que a condenação da Relação em um ano de prisão só se tornará efectiva se o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a confirmar.

Porém, em 2013,  tendo como objectivo reduzir a  carga de trabalho do STJ, foi publicada uma lei ordinária - a Lei 20/2013 (cf. aqui) - que dizia que só eram recorríveis para o STJ as condenações da Relação que implicassem penas de prisão superiores a 5 anos, o que não era o caso do deputado Coelho, que tinha sido condenado pela Relação somente em um ano de prisão. 

O STJ recusou o recurso do deputado Coelho invocando a Lei 20/2013 e o deputado Coelho recorreu para o Tribunal Constitucional (TC) pedindo a declaração de inconstitucionalidade dessa Lei que o impedia de exercer o direito ao recurso consagrado na Constituição.

O TC tinha agora pela frente o caso clássico - um verdadeiro caso-de-escola -, do problema conhecido por conflito de leis, que qualquer estudante de Direito aprende a resolver logo no primeiro ano da Faculdade. A Constituição diz que o deputado Coelho tem direito ao recurso. A Lei 20/2013 diz que não tem porque a condenação dele não foi em pena superior a 5 anos de prisão.

Qual a Lei que prevalece, a Constituição (artº 32º) ou a Lei ordinária 20/2013?

As leis têm uma hierarquia, há leis que são mais importantes do que outras. Ora, quando estão em conflito duas leis, o problema resolve-se fazendo prevalecer a lei mais importante, a lei de nível superior na hierarquia das leis. No caso em apreço, prevalece a Constituição (artº 32º) sobre a Lei ordinária (nº 20/2013), que diz que o deputado Coelho tem direito ao recurso.

E foi assim, seguindo este antigo princípio de justiça, que o TC decidiu?

Não, porque o TC não é um tribunal de justiça, é um tribunal político. E ninguém pagaria os altíssimos vencimentos que os juízes do TC recebem, e mais todas as outra prebendas, para eles darem respostas a recursos que até um estudante de primeiro ano de Direito, ou mesmo um qualquer leigo, sabe dar.

Mas não apenas isso. Os juízes do TC não são formados em Justiça, eles são formados em Direito (uma palavra que vem do latim e significa "regra"). Ora, as pessoas formadas em Direito, isto é, em regras, dão excelentes burocratas, mas péssimos juízes, e esta é a razão principal por que a justiça portuguesa é tão má. Os juízes portugueses são formados em regras, não em justiça.

A simplicidade é um dos atributos da justiça e a vida em sociedade seria impossível se a noção de justiça não fosse simples e acessível ao entendimento do cidadão comum. Ora, aquilo que os juízes do TC fizeram foi complicar aquilo que era simples e, dando embora satisfação à pretensão do deputado Coelho, fizeram-no através de um acórdão que é um exemplo horrendo de como fazer justiça, na realidade, o exemplo acabado de como não se faz justiça.

Os treze "juízes conselheiros" do TC, reunidos em Plenário para apreciar a questão, podiam-se ter perdido pelo caminho extraordinariamente complexo e irrelevante por onde enveredaram e ter cometido uma grande injustiça.

Mas, às vezes, Deus escreve direito por linhas tortas e foi esse o caso. O acórdão é o nº 595/18, e foi relatora a "juíza conselheira" Maria de Fátima Mata Mouros (cf. aqui). O acórdão faz prevalecer a Constituição sobre a Lei ordinária e reconhece ao deputado Coelho o direito a recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça que, meses depois, o viria a absolver (cf. aqui).

É sobre o mesmo conflito de leis - entre a Constituição (artº 32º) e a Lei ordinária nº 20/2013 - que trata o misterioso acórdão nº 646/20 do Tribunal Constitucional, do dia 16 deste mês - que nunca mais é postado no site do TC  (cf. aqui) -, e de que é relatora a juíza Rangel. 

(Continua)

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