27 novembro 2020

A juíza Rangel (V)

 (Continuação daqui)


V. De aviário

Eu não gostaria nunca de partilhar uma reunião informal de verdadeiros juízes conselheiros para não ter de ouvir, nos momentos de maior relaxe, as expressões que eles provavelmente utilizam para se referirem àquela outra classe de "juízes conselheiros" a  que pertence a juíza Rangel - "juízes conselheiros de aviário", "juízes conselheiros de vão-de-escada"?

A Inglaterra, que é a mãe da democracia moderna, não possui um Tribunal Constitucional. Na realidade, a Inglaterra não possui sequer uma Constituição. Aquilo que a Inglaterra possui é uma tradição constitucional, uma série de documentos em sucessão - de que os principais são a Magna Carta e o Bill of Rights - que, em conjunto, formam uma "Constituição".  Mas não existe um documento em Inglaterra, como existe em Portugal a Constituição de 1976, a que os ingleses possam chamar a sua Constituição.

Nenhum país saído da tradição democrática inglesa - como os EUA, o Canadá ou a Austrália para mencionar apenas os principais - possui um Tribunal Constitucional. Os EUA, que são o primeiro e o mais importante de todos eles, possuem uma Constituição, mas não um Tribunal Constitucional. Quem julga as questões constitucionais nos EUA é a Supreme Court, o equivalente em Portugal do Supremo Tribunal de Justiça porque é aí que estão os juízes mais qualificados do país.

O Tribunal Constitucional foi criado em Portugal em 1982, sucedendo ao Conselho da Revolução (cf. aqui). Desde a sua criação que este Tribunal tem tido imensos críticos e ainda hoje não falta no país quem defenda enfaticamente a sua extinção. O caso não é para menos. 

A crítica mais rasteira que desde sempre se fez ao TC é a de que ele constitui o mais apetitoso tacho para os boys e as girls dos partidos políticos, e ainda por cima um tacho privativo dos juristas, suscitando a inveja dos médicos, dos economistas, dos psicólogos e até dos artistas que também são políticos. A crítica é rasteira mas muito verdadeira.

A crítica mais elevada, e também a mais importante, é a de que o TC politiza a justiça e corrompe um dos mais importantes princípios em que assenta a democracia - a separação e a independência do poder judicial em relação ao poder político.

Na realidade, criado aparentemente para dirimir questões constitucionais, foi apenas uma questão de tempo até o Tribunal Constitucional ocupar o lugar do Supremo Tribunal de Justiça - o qual passou a ser supremo apenas no nome - e usurpar as suas funções, passando a ser ele o último tribunal de apelação e, na prática, o verdadeiro supremo tribunal do país.

O caso Neto de Moura vs. guardas da GNR, que tenho vindo a referir, é um exemplo ilustrativo. Quem vai decidir se os guardas da GNR são ou não criminosos não é o Supremo Tribunal de Justiça, mas, em princípio, o Tribunal Constitucional.

Se o recurso que os guardas da GNR interpuseram para o TC for rejeitado, eles vão ter de cumprir a pena que lhes foi imposta pela Relação de Lisboa - uma multa de 2360 euros e nove mil euros de indemnização ao juiz Neto de Moura. Somente no caso do recurso ser deferido pelo TC é que o processo vai para o Supremo a fim de ser apreciado por este tribunal. 

Quer dizer, quem tem a espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça dos militares da GNR é o Tribunal Constitucional, enquanto o Supremo Tribunal de Justiça assiste de lado à espera de uma decisão.

É neste ponto em que o Tribunal Constitucional - e não mais o Supremo Tribunal de Justiça - se torna o supremo tribunal do país que surge o problema maior. E esse problema é o de que, enquanto os juízes do Supremo Tribunal de Justiça são verdadeiros juízes - na realidade, a elite de juízes do país -, a esmagadora maioria dos "juízes" do Tribunal Constitucional não são juízes nenhuns. São militantes partidários escolhidos pelos partidos políticos.

Dos 13 "juízes" que compõem o Tribunal Constitucional, dez são designados pelos partidos e confirmados pela Assembleia da República (sendo os outros três cooptados pelos anteriores). Trata-se dos homens e mulheres de mão que os partidos colocam no Tribunal Constitucional para prosseguirem as suas respectivas agendas políticas. 

E mesmo quando os partidos nomeiam verdadeiros juízes para o TC, raramente esses juízes são juízes conselheiros, mas antes juízes de tribunais inferiores (v.g., juízes de direito e juízes desembargadores). Na composição actual do TC existem apenas dois verdadeiros juízes conselheiros (cf. aqui). Todos os outros usurpam o título. Até uma assessora foi recentemente promovida a juíza conselheira do TC por proposta do partido do Governo, esperando-se que um dia a mesma sorte possa calhar a uma das mulheres da limpeza.

Naturalmente, a lealdade dos "juízes" do TC é para com os partidos que os nomeiam, e não para com o ideal de justiça.  Faltam a estes "juízes conselheiros" a formação, a experiência e o mérito dos verdadeiros juízes conselheiros. Faltam também a estes "juízes" os atributos mais importantes de uma justiça democrática - a independência e a imparcialidade. A conclusão inevitável é que o Tribunal Constitucional é um tribunal político e não um tribunal de justiça. 

Em consequência, o ambiente de politiquice no TC só pode ser insuportável, um autêntico ninho de cucos. No espaço de seis meses, dois juízes renunciaram às suas funções no TC (cf. aqui), um indicador da atmosfera que lá se respira. No caso da juíza Clara Sottomayor, aparentemente, para fugir a um processo disciplinar (cf. aqui).

A conclusão mais importante, porém, é a que vem a seguir. São os políticos, através dos homens e mulheres de mão que possuem no Tribunal Constitucional, que mandam no sistema de justiça. O Tribunal Constitucional é o símbolo institucionalizado da corrupção do sistema de justiça porque, numa democracia, quem deve mandar na justiça são os juízes, não os políticos. O contrário é próprio de uma ditadura. Mas é o contrário que vigora em Portugal.

(Continua) 

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