26 novembro 2020

A juíza Rangel (IV)

 (Continuação daqui)



IV. Num abrir e fechar de olhos

Anos depois, o juiz Neto de Moura viria a tornar-se conhecido no país por outras razões. Mas naquele dia do ano de 2012 ele conduzia um carro sem matrícula em Loures quando foi mandado parar por uma patrulha da GNR.

Aquilo que se seguiu, segundo as notícias dos jornais, não é difícil de imaginar. Os GNR's fizeram menção de multar o juiz, como fariam a qualquer cidadão. Mas Neto de Moura, qual galifão, terá sacado do seu cartão de juiz e ameaçado os guardas da GNR, ao estilo: "Vocês nem sabem com quem é que se estão a meter!...".

Os GNR's não se deixaram intimidar e multaram o juiz. Mas não apenas isso. Fizeram queixa ao Comando da atitude intimidatória do juiz e o Comando da GNR apresentou queixa de Neto de Moura ao Conselho Superior da Magistratura (CSM).

O CSM é um órgão muito corporativo que prefere deixar alguns juízes andarem por aí à solta durante anos, e protegê-los,  até rebentar algum escândalo, como sucedeu recentemente com o juiz Rui Rangel e alguns dos seus colegas do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL). É nestas alturas que o CSM vem explicar ao público que algumas maçãs podres não podem pôr em causa a qualidade da macieira, mesmo quando foi o CSM que, pela sua inação e espírito corporativo, deixou apodrecer as maçãs.

O CSM não encontrou motivos na queixa da GNR para proceder contra o juiz Neto de Moura e o juiz aproveitou essa circunstância para pôr um processo-crime por ofensas (denúncia caluniosa) aos guardas da GNR, exigindo uma indemnização. 

A partir daqui o caso Neto de Moura vs. GNR é, em tudo, igual ao caso Rui Rangel vs. Correio da Manhã, excepto num ponto. 

Em ambos os casos, os arguidos foram absolvidos em primeira instância, de acordo com a jurisprudência do TEDH. 

Depois, os casos seguiram ambos para recurso no TRL e aí os juízes desembargadores inverteram as decisões de primeira instância e, ostensivamente contra a jurisprudência, condenaram os guardas da GNR num caso, e os jornalistas do CM no outro, a pagarem indemnizações aos seus colegas - 50 mil euros ao juiz Rui Rangel, nove mil ao juiz Neto de Moura. Os militares da GNR foram ainda condenados a pagar uma multa de 2360 euros (cf. aqui).

Os jornalistas do CM, condenados pela primeira vez na Relação, e fazendo uso do artigo 32º da Constituição que consagra o direito ao recurso, recorreram então para o Supremo Tribunal de Justiça, que os absolveu definitivamente. O mesmo quiseram fazer os militares da GNR mas já não foram a tempo.

É que, entretanto, entrou em vigor a Lei 20/2013 que, no intuito de aligeirar a carga de trabalho que impende sobre o STJ,  determina que só são recorríveis para o STJ decisões da Relação que impliquem penas de prisão superiores a 5 anos, o que não era o caso dos guardas da GNR, que tinham sido condenados apenas em pena de multa (para além das indemnizações).

Os militares da GNR recorreram então para o Tribunal Constitucional pedindo que fosse declarada inconstitucional a Lei 20/2015 que os impedia de exercer o direito ao recurso que está consagrado na Constituição (artº. 32º). 

O recurso foi parar à 2ª Secção do Tribunal Constitucional. Na Secção ao lado - a 3ª - estava a juíza Rangel. Foi assim que, sem que nada o fizesse prever, os guardas da  GNR e a juíza Rangel se tornaram vizinhos no Palácio Ratton, os guardas da GNR na 2ª Secção, a juíza Rangel na 3ª.

Isto aconteceu no ano de 2019, tinham passado sete anos sobre o momento em que os guardas  da GNR multaram o juiz Neto de Moura em Loures. Para os militares da GNR esse dia do ano de 2012, embora vivo nas suas memórias, devia agora parecer muito distante no passado. Mas a justiça portuguesa era assim, sete anos depois o processo judicial ainda andava a dar voltas no Tribunal Constitucional, embora tendo agora como vizinha a juíza Rangel - o processo na 2ª Secção, a juíza na 3ª.

Mas o ano de 2012 não ficou apenas na memória dos militares da GNR, como a memória de uma grande injustiça da justiça portuguesa que sete anos depois ainda não estava terminada. O ano de 2012 ficou também na memória da juíza Rangel. E o caso não era para menos.

Os juízes, para além do curso de Direito, têm uma formação específica e exigente que se estende por vários anos no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), estando sujeitos a critérios de selecção e de avaliação apertados. 

Depois, quando começam a carreira, fazem-no, naturalmente, no degrau mais baixo, correspondente à categoria de "juiz de direito", que é o juiz do tribunal de primeira instância. Anos depois, por concurso, alguns conseguem ser promovidos à categoria de "juiz desembargador", que é o juiz do Tribunal da Relação. Finalmente, muitas vezes já na casa dos 60 anos de idade, alguns conseguem ainda ser promovidos à categoria máxima da judicatura, a de "juiz conselheiro", que é o juiz do Supremo Tribunal - a elite dos juízes.

Pois bem, num só dia desse bendito ano de 2012 - embora um ano malfadado para os guardas da GNR -, a advogada Rangel passou de advogada a juíza sem ter de frequentar o CEJ ou qualquer formação que fosse, e sem ter de passar qualquer exame ou concurso. Aquilo que a qualquer pessoa demoraria anos a conseguir e muitos exames a passar até se tornar juiz, a advogada Rangel conseguiu num só dia do ano de 2012.

Não apenas isso, porque o milagre não termina aqui. É que ela podia ter passado instantaneamente de advogada a juíza recebendo a categoria mais baixa da judicatura  - a de "juíza de direito" - e tendo depois de tarimbar e passar nos exames e concursos, como fazem os verdadeiros juízes, até atingirem o topo da carreira na categoria de "juízes conselheiros".

Mas não. A advogada Rangel não só passou em apenas um dia de advogada a juíza como foi ocupar imediatamente a categoria mais alta da judicatura. É que a juíza Rangel - que nunca frequentou o CEJ, que nunca passou um exame ou concurso para juiz, que nunca teve necessidade de se candidatar para ser promovida na carreira, que não tinha sequer um dia de experiência como juiz -  não é uma juíza qualquer. A juíza Rangel é "juíza conselheira", chegou ao topo do edifício sem nunca ter subido a escada.

Foi o milagre do elevador. A juíza Rangel tem razões para celebrar o ano de 2012. Como os guardas da GNR têm razões para o chorar. Que Deus abençoe a juíza Rangel e que ela possa um dia retribuir condignamente a quem lhe fez tamanho milagre.  

Quem terá sido? Que milagreiro existirá por aí que transforma uma simples advogada numa juíza conselheira num abrir e fechar de olhos?

(Continua)

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