11 maio 2020

O direito à não-auto-incriminação (II)

(Continuação daqui)


II. Sem olhar para trás



O Código do Processo Penal (CPP) é muito seguramente o código mais anti-democrático (fascista, na linguagem popular) do ordenamento jurídico português. É também o reino de actuação do Ministério Público.

Exemplo do carácter anti-democrático do CPP é o instituto jurídico previsto no artº 358º deste Código conhecido por "Alteração não-substancial dos factos" e um outro que lhe está relacionado, previsto no artº 359º, conhecido por "Alteração substancial dos factos".

Exemplificando, de acordo com o primeiro, digamos que eu sou levado a tribunal por "maus tratos a animais" porque, segundo a acusação do MP e os testemunhos dos vizinhos, todos os dias de manhã bato no meu cão. Chego a tribunal e provo que não tenho cão. Aquilo que tenho é um periquito. Saio do tribunal condenado pelo crime de "maus tratos a animais" por bater no periquito.

No segundo, eu sou levado a tribunal acusado do crime de "ter cão". Chego lá e provo que não tenho cão nenhum. Saio de lá condenado pelo crime de "não ter cão".

Quer dizer, na "Alteração não-substancial dos factos" o crime é o mesmo ("maus tratos a animais"), o facto ilícito que lhe dá origem é que é diferente ("bater no periquito" em lugar de "bater no cão"). Já na "Alteração substancial dos factos" é o crime que é diferente ("não ter cão", em lugar de "ter cão").

A expressão popular portuguesa "preso por ter cão e preso por não ter" não é apenas a expressão da arbitrariedade com que o espírito do povo olha para a justiça  criminal no país. Ela é também de um grande realismo porque é, de facto, possível em Portugal um homem ser preso por ter cão ou preso por não ter, e o que torna isso possível é precisamente o instituto da "Alteração substancial dos factos" previsto no artº 359º do CPP.

É neste momento que vou de volta ao meu case-study e ao direito à não-auto-incriminação.

Depois de me ter absolvido do crime de difamação agravada ao Paulo Rangel, o juiz do Tribunal de Matosinhos passou ao crime de ofensa a pessoa colectiva, e aí condenou-me.

Porém, não me condenou pelo facto de que a sociedade de advogados Cuatrecasas se queixara e que me levara a julgamento - o de, no meu comentário televisivo, eu ter denegrido a sua reputação. Não, o juiz invocou o artº 358º do CPP ("Alteração não-substancial dos factos") para fazer uma coisa que, à distância de dois anos,  parece absolutamente mirabolante num país democrático em pleno século XXI - especialmente um país que subscreveu a Declaração Universal dos Direitos do Homem (CEDH) -, mas que, não obstante, é absolutamente normal num país que tem o nosso CPP.

Fez o seguinte (está descrito aqui, um dia apos a sentença):

Pegou num e-mail que eu troquei com um mecenas e que, ainda na frase de instrução, eu submetera ao tribunal para minha defesa. Através desse e-mail, e doutros que juntei, eu procurava mostrar que a Cuatrecasas estava em conluio com a administração do Hospital de São João (HSJ) para boicotar a obra do Joãozinho relativa à construção por via mecenática da ala pediátrica do HSJ.

Em seguida, virou esse e-mail contra mim, considerando que ele era prova de que eu desconfiara da relação de lealdade que existe entre advogados (Cuatrecasas) e seus clientes (HSJ), e que essa desconfiança constituía um facto ilícito.

Finalmente, invocando o artº 358º do CPP  e o instituto da "Alteração não-substancial dos factos", condenou-me por ofensa a pessoa colectiva, não por eu ter denegrido a reputação da Cuatrecasas, mas por ter posto em causa a relação de lealdade entre a Cuatrecasas e o seu cliente (HSJ).

Tudo isto foi feito durante a leitura da sentença e eu devo confessar que saí da sala do tribunal condenado sem saber bem porquê. Foi só já cá fora, depois de pedir esclarecimentos à minha advogada, e de eu próprio estudar o assunto que compreendi tudo.

E não podia acreditar.

Eu não podia acreditar que, tendo eu, de boa-fé, fornecido ao tribunal um documento para minha defesa, o juiz - o próprio juiz - o utilizasse como "prova" de um "crime" que nunca me passou pela cabeça e que, em qualquer caso, não é crime nenhum - desconfiar de advogados.

Eu via facilmente um safado qualquer ou um chico-esperto a fazer uma coisa destas - a aproveitar-se de alguma coisa que uma pessoa lhe faculta de boa-fé para a utilizar maldosamente (dolosamente, na linguagem jurídica) contra ela. Mas eu não conseguia ver um juiz a fazer isto, certamente que não um juiz de direito.

E, no entanto, foi isso que o juiz fez. E tudo pareceu legal.

Porém, a legalidade foi só na aparência.

Na realidade, o juiz tinha acabado de trucidar, sem olhar para trás, o meu direito à não-auto-incriminação, previsto no artº 6º da CEDH (cf. aqui, p. 40 e segs.). Fui eu que forneci ao tribunal a  "prova" do "crime" por que fui condenado. E esse direito diz, precisamente, que é meu direito não contribuir para a minha própria incriminação.


(Continua)

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