30 maio 2020

Cinco anos (6)

(Continuação daqui)


 6. Ministério Público


"Todos têm medo do Ministério Público", declarou recentemente na TV o advogado José Miguel Júdice. Há cinco anos atrás, é muito pouco provável que ele ousasse dizer isto.

Mais recentemente, o Jornal i fazia do Ministério Público o seu tema de capa, cujos magistrados a certa altura eram referidos como uma "cambada de bandidos". Na mesma peça, o advogado João Nabais considerava a sede executiva do Ministério Público - o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), que é o equivalente moderno da sede da Inquisição - um dos cancros do sistema de justiça.

O outro cancro, na opinião de Nabais, era o correspondente actual da sede do Tribunal do Santo Ofício - o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) - onde a Inquisição outrora, e o Ministério Público agora, sacrifica as suas vítimas.

O próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça mostrou-se recentemente favorável à extinção do TCIC  e a ministra da Justiça - ela própria magistrada do Ministério Público - referiu-se aos mega processos elaborados pelo DCIAP, que são aqueles que melhor imitam na actualidade os grandes processos inquisitoriais dos séculos passados, como sendo monstros não-julgáveis.

A democracia liberal é uma consequência de reforma protestante iniciada no século XVI nos países do norte da Europa. Portugal e Espanha, que foram a frente da contra-reforma, defenderam-se do protestantismo e da democracia, mantendo os seus regimes de monarquia absoluta, através de vários instrumentos, o principal dos quais foi a Inquisição.

A Inquisição visava impor o conformismo religioso e político, matando toda a liberdade de expressão e a diversidade de pensamento em que se funda o pluralismo democrático. Com a revolução liberal a Inquisição foi extinta em 1821, para ressurgir onze anos depois sob a designação de Ministério Público. A principal diferença é que os inquisidores, em lugar de serem padres, passaram a ser juristas.

Não surpreende, por isso, que os portugueses tenham hoje tanto medo do Ministério Público como antes tinham da Inquisição, e que o Ministério Público constitua não apenas o maior cancro do sistema de justiça do país, mas o maior cancro da democracia.

O Ministério Público é a instituição mais antidemocrática que se pode imaginar porque, nos passos da Inquisição, foi concebida precisamente para lutar contra a democracia. É uma burocracia de funcionários públicos não-eleitos com um poder absoluto e que ninguém controla.

Se ainda hoje "Todos têm medo do Ministério Público", há cinco anos atrás era muito pior. Na realidade só consigo recordar dois comentadores que, com alguma regularidade, criticavam então o Ministério Público. Um era o Miguel Sousa Tavares na TVI, outro era eu próprio no Porto Canal.

O Miguel Sousa Tavares, que foi advogado e, em parte, reflectia a cultura medieval do sistema de justiça, às vezes fazia preceder as suas críticas ao Ministério Público de um obsequioso "Com todo o respeito…". Naturalmente, eu, que nunca pertenci ao sector, não tinha esses pruridos.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com algumas condenações contundentes do Ministério Público e do Estado português em anos recentes, também contribuiu para pôr o Ministério Público sob escrutínio e revelar alguns dos seus desmandos. Alguns casos mediáticos de corrupção no Ministério Público, no mesmo período, também contribuíram para mostrar aos cidadãos como a instituição funciona.

Porém, foi o próprio Ministério Público naquelas suas operações regulares de espalhafato público em que constitui dezenas de arguidos de uma só vez e imputa milhares de crimes ao mesmo tempo, e das quais, anos depois, nada resulta, que foi quem mais contribuiu nos últimos anos para a sua própria ridicularização e descrédito.

Se há cinco anos eram raros aqueles que ousavam criticar o Ministério Público, hoje a situação mudou apreciavelmente. E se o Ministério Público foi, ele próprio, o principal responsável por esta mudança, é justo dizer que este blogue, no âmbito do meu case-study, não lhe ficou atrás.

Para o Ministério Público - felizmente para todos nós - a vida nunca será mais como dantes. De instituição opaca que quase nenhum cidadão ousava criticar há cinco anos atrás, está agora a ficar num pedestal em relação ao qual qualquer cidadão se sente livre e justificado para praticar tiro ao alvo.

Sem comentários: