09 maio 2020

Auto-incriminação

Numa série de posts anteriores, sob o título "Nada mudou", utilizei um tweet do Rui Pinto onde ele tecia algumas considerações acerca do processo penal de que está a ser alvo, para estabelecer comparações com o processo penal da Inquisição, e as semelhanças eram notáveis.

O tema do primeiro post dessa série era a auto-incriminação (cf. aqui). Segundo o Rui Pinto, a procuradora do Ministério Público que conduz o processo contra ele, de nome Patrícia Barão, não está interessada em nada do que ele possa dizer ou fazer (v.g., apresentar provas em sua defesa, denunciar esquemas de corrupção), mas tão-só e exclusivamente em tudo aquilo que o possa auto-incriminar.

Nesse post, citei de um artigo que descreve o processo inquisitório, o qual tinha como uma das características marcantes procurar que o arguido se auto-incriminasse. Uma das tarefas principais dos inquisidores era a de procurar obter a confissão do arguido, a qual não só era a "prova cabal" dos crimes que lhe eram imputados, como tinha ainda um valor religioso de purificação da alma.

Daí as práticas que a Inquisição desenvolveu para extrair a confissão aos arguidos, incluindo a decepção, a ameaça, a chantagem e a tortura. Muitos arguidos, naturalmente, acabavam a "confessar crimes" que nunca tinham cometido só para se livrarem dos horrores da tortura e, pior ainda, da fogueira.

Foi em reacção a estas práticas desumanas da justiça inquisitorial - de que Portugal e Espanha foram os intérpretes mais notáveis - que, a partir do século XVII no Reino Unido, e depois, no século XVIII nos Estados Unidos da América, se desenvolveu um dos modernos direitos humanos fundamentais - o direito à não-auto-incriminação.

Este direito ficou consagrado na Quinta Emenda da Constituição Americana, e foi seu autor James Madison (1789):

"No person shall be subject, except in cases of impeachment, to more than one punishment or trial for the same offense; nor shall be compelled to be a witness against himself; nor be deprived of life, liberty or property, without due process of law, nor be obliged to relinquish his property, where it may be mecessary for public use, without just compensation (…)"
(cf. aqui, ênfase meu)

"Nenhuma pessoa pode ser obrigada a ser testemunha contra si própria". Foi assim que nasceu de forma explícita, no primeiro país do mundo a nascer democrático - os EUA -, o moderno direito à não-auto-incriminação, embora, como já foi referido, este direito tenha tido a sua origem na pátria-mãe da nação americana (cf. aqui).

Este direito significa que todo o cidadão, enquanto arguido em processo penal, tem o direito a que não seja utilizada contra ele a informação que fornece às autoridades judiciais, e inclui também o direito a permanecer em silêncio perante as autoridades judiciais.

É um direito democrático moderno, é certo, mas mesmo assim, para os americanos, já tem quase dois séculos e meio de existência e os ingleses dirão mesmo que já tem mais de três séculos. Naturalmente, quem procurar este direito na Constituição portuguesa de 1976 não o vai encontrar porque Portugal não tem uma tradição democrática. É um direito que nem sequer terá passado pela cabeça aos deputados constituintes portugueses de então.

Na Europa democrática, o direito à não-auto-incriminação está hoje consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950), fazendo parte integrante da jurisprudência do artº 6º relativo ao "Direito a um processo equitativo" (cf. aqui, pp. 35 e segs). Portugal subscreveu a Convenção em 1978, quatro anos depois de aderir à democracia.

Pois bem, se o direito à não-auto-incriminação já tem vários séculos de existência em países democráticos e  se está consagrado na CEDH que Portugal subscreveu em 1978, a verdade é que o Ministério Público em Portugal continua a actuar rotineiramente como se ele não existisse e a seguir as práticas ancestrais da Inquisição, procurando extrair do arguido informações que o auto-incriminem.

Este caso talvez ilustre melhor do que qualquer outro como a justiça penal portuguesa ainda vive na Idade Média e como a sua reforma democrática, que nunca foi feita, é necessária e urgente.

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