04 março 2020

O Labirinto (I)

I. O Tribunal Constitucional não deixa



Há cerca de um mês surgiu na comunicação social uma notícia que eu deixei registada neste blogue para a comentar na primeira oportunidade (cf. aqui). O caso envolve um processo judicial por ofensas (denúncia caluniosa) do juiz Neto de Moura contra quatro cabos da GNR. O juiz Neto de Moura é presentemente juiz desembargador no Tribunal da Relação do Porto.

O interesse da notícia era o de que o processo estava no Tribunal Constitucional.

Porém, passado este mês em que tantas coisas significativas aconteceram na justiça, o caso ganha outros pontos de interesse, e é sobre eles que vou comentar, antes de responder à questão:

-A que propósito é que um processo destes chega ao Tribunal Constitucional?

Ao responder a esta última questão eu pretendo ilustrar um ponto que contribui para tornar a justiça portuguesa morosa e ineficiente, que é o seu carácter labiríntico, o qual serve os juristas na sua tripla qualidade de advogados, juízes e magistrados do Ministério Público, mas que não serve nada a população portuguesa, que é quem a justiça deveria servir.

Começo pelo factos. Em 2012, no concelho de Loures, o juiz Neto de Moura conduzia um carro sem matrícula e foi parado por uma patrulha da GNR que fez menção de lhe fazer aquilo que faz a todos os cidadãos que são apanhados em situação semelhante - multá-lo e apreender-lhe o carro.

O juiz, aparentemente, terá feito valer a sua condição de juiz para se eximir ao cumprimento da lei e intimidar os guardas. Os guardas não se deixaram intimidar e fizeram cumprir a lei. Mais, queixaram-se ao comando pela forma como foram tratados pelo juiz, e o comando apresentou queixa contra o juiz ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), sendo os guardas testemunhas.

O CSM não viu motivos para censurar o juiz Neto de Moura e foi então que o juiz apresentou uma queixa-crime contra os guardas por calúnia, alegando que os seus testemunhos eram falsos, e pedindo uma indemnização.

Começa aqui a semelhança com o caso que este mês agitou  a justiça, envolvendo o juiz Rui Rangel como queixoso e os jornalistas do Correio da Manhã como réus, e com o meu próprio case-study, e que já tratei desenvolvidamente noutra altura (cf. aqui).

Nos três casos, trata-se de crimes de ofensas, aqueles pelos quais o TEDH vem condenando Portugal sistematicamente ao longo das últimas décadas, sustentando que as ofensas não são crime nenhum e devem ser descriminalizadas.

Nos três casos, os queixosos são insiders do sistema de justiça, com capacidade para manipular a justiça - como este mês se viu no caso Rui Rangel vs. Correio da Manhã - e obter condenações que lhes sejam favoráveis, recebendo as respectivas indemnizações. Mais tarde, mesmo que Portugal seja condenado no TEDH, as indemnizações não são devolvidas ao réu, e quem indemniza este são os contribuintes portugueses, não os "ofendidos". Portanto, em Portugal, as queixas por ofensas compensam.

Nos três casos, os réus foram absolvidos em primeira instância. Aconteceu também no caso Neto de Moura vs. cabos da GNR. O Tribunal de Loures absolveu os cabos da GNR em primeira instância.

Nos três casos, quando o recurso sobe à Relação, o Tribunal da Relação inverte a decisão de primeira instância e condena os réus. O Tribunal da Relação de Lisboa inverteu a decisão do Tribunal de Loures e condenou os cabos da GNR a uma multa de 2340 euros e a uma indemnização de nove mil euros ao juiz Neto de Moura.

É aqui que os três casos se vão separar. No caso Rui Rangel vs. Correio da Manhã, os jornalistas do CM recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça que os absolveu. Porém, no caso Neto de Moura vs. cabos da GNR, e no meu próprio case-study, os cabos da GNR recorreram para o Supremo mas obtiveram a seguinte resposta:

-Não podemos apreciar o vosso recurso porque o Tribunal Constitucional não deixa.

E foi essa também a resposta que eu obtive no meu case-study.

(Continua)


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