27 janeiro 2020

Fixação da jurisprudência (I)


I. Até de prisão 


É uma questão perene e que, provavelmente, a menos que o crime de injúrias venha a ser banido do Código Penal, ocupará os juristas portugueses até à eternidade, com grandes ganhos para a civilização.

É a questão de saber se a expressão "Vai para o caralho" é crime ou não é crime [de injúria]. Ficam de lado expressões onde a palavra caralho é utilizada como expletivo (v.g., "Ai caralho!...que me caiu uma mosca na sopa...") a respeito das quais a jurisprudência nacional é hoje consensual de não revestirem a natureza de crimes.

Em 2017 a expressão "Vai para o caralho" subiu ao Supremo Tribunal de Justiça, como não podia deixar de ser. Uma questão tão importante tinha de subir ao mais alto tribunal judicial da nação para que ele dissesse de sua justiça e os portugueses ficassem a saber de uma vez por todas se mandar alguém para o caralho é ou não é crime de injúrias.

A história conta-se em poucas palavras. Uma pessoa disse a outra "Vai para o caralho" e esta pôs a primeira em tribunal. O advogado da ofendida (chamada assistente no processo) terá fundamentado a sua queixa-crime com base num acórdão da Relação de Coimbra em que a expressão "Vai para o caralho" tinha conduzido à condenação do réu.

Porém, neste segundo caso, o réu foi absolvido num acórdão da Relação do Porto, ainda que tivesse pronunciado exactamente a mesma expressão em relação à assistente. O advogado da assistente ficou compreensivelmente indignado: então, num caso a expressão "Vai para o caralho" é crime e no outro não é?

O advogado decidiu então recorrer para o Supremo para que este fixasse a jurisprudência acerca da matéria.  Reproduzo a seguir a argumentação do advogado.

No fundo, depois de citar dos dois acórdãos, um em que a expressão "Vai para o caralho"  foi considerada crime, noutro em que a mesma expressão não foi considerada crime, aquilo que o advogado faz é dirigir-se ao Supremo com o seguinte pedido: «Fazem favor de esclarecer de uma vez por todas se a expressão "Vai para o caralho" é crime ou não é crime [de injúria]»

E o Supremo, o que é que respondeu?

Bem, esse é o grande mistério que eu deixo por desvendar até ao próximo post. Mas a excitação é enorme: Será que os portugueses vão finalmente ficar a saber de uma vez por todas se mandar alguém para o caralho é crime, implicando uma pena de multa e, no caso de reincidência, até de prisão?

Para já ficam as alegações do advogado da assistente:


«iv. Ambas as decisões têm entendimento oposto sobre se a expressão "vai para o caralho", dirigida pelo agente ao visado pela expressão, é ou não ofensiva da honra e consideração deste e, por conseguinte, se preenche ou não o tipo do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º do CP.
(…)
viii. As asserções antagónicas dos acórdãos invocados consagram soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito - se a expressão “vai para o caralho”, dirigida pelo agente ao visado pela expressão, é ou não ofensiva da honra e consideração deste e, por conseguinte, se preenche ou não o tipo do crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do CP.
(…)
B. Considerou-se no acórdão fundamento, que as expressões proferidas pelo arguido na presença de terceiros, dirigindo-se à ofendida, "vai para o caralho", "não tens nada que estar aqui", integravam a prática, pelo mesmo, em autoria material de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do CP, sendo que no acórdão recorrido, sendo em circunstâncias semelhantes, o facto de terem sido dirigidas para a assistente, as expressões, "vai para o caralho", "não tens nada que estar aqui", entendeu-se, diversamente, não perfectibilizarem as mesmas, o crime p. e p. pelo art. 181º do CP.
(…)
Ora, e como vimos, no acórdão fundamento considerou o julgador, no seu circunstancialismo específico, que uma certa factualidade – [que incluía a expressão “vai para o caralho”, mas também a expressão “vai para a cona da tua mãe”] – eram suficientes para preencher o sobredito conceito (de ofensa da honra e consideração do visado]; enquanto no acórdão recorrido por seu turno, entendeu o julgador, também no seu próprio circunstancialismo, que o acervo factual em equação – [que incluía igualmente, mas aqui só esta, a expressão “vai para o caralho”] – não era suficiente para preencher o mesmo conceito». 

E, a concluir:

«Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Ex.as doutamente suprirão, deve:
a) ser fixada jurisprudência no sentido de que a expressão "vai para o caralho" é ofensiva da honra (…)»



(Continua)

Sem comentários: