21 janeiro 2020

A honra (III)

(Continuação daqui)


III. Os chifres

Continuo a citar do trabalho do Jornal i que referi no post anterior acerca de sentenças e acórdãos envolvendo "crimes" de ofensas à honra:

"Os tribunais são especialistas em encontrar significados incríveis para as expressões do povo. Em 2002, o Ministério Público deduziu uma acusação pelo crime de ameaça porque “durante uma discussão, o arguido ameaçou o ofendido, dizendo que lhe dava um tiro nos cornos”. Mas o juiz não aceitou a acusação por entender que não existia crime já que o ofendido é “um ser humano” e “um ser humano não tem cornos”: ou seja, não é um veado ou outro bicho que o valha. Mas a Relação de Lisboa teve entendimento diferente: “Será porque por não ter cornos não tem de ter medo, já que não é possível ser atingido no que não se tem?”, questionou o juiz-desembargador. Além disso, continuou, “num país de tradições tauromáquicas e de moral ditada por uma tradição ainda de cariz marialva, não é pouco vulgar dirigir a alguém expressão que inclua a referida terminologia”. Dois anos depois, a Relação de Évora usou o mesmo raciocínio, invocando que o sentido de “dar um tiro nos cornos” é  “necessariamente metafórico”: “Quando se alude a um ser humano cornudo, ou que tem cornos, pretende aludir-se a que é vítima de traição sexual do seu parceiro, ou seja, tal epíteto é consequente da consideração de haver infidelidade sexual do seu consorte”. Os chifres voltaram a ser objecto de discussão jurídica em 2011: o Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que usar a expressão “fodo-te os cornos” não representa crime de injúria, apenas “falta de educação por parte de quem a profere”: “É uma expressão que se assemelha ao ‘vou-te ao focinho’.” 
in Jornal I, 06.12.2012

Aqui gostei sobretudo da última parte relativa ao entendimento dado pelo Tribunal da Relação de Coimbra à expressão "fodo-te os cornos". Fez-me lembrar aquele juiz que disse ao irmão, encostando-lhe a arma à cabeça: "Estouro-te os miolos!" (cf. aqui). Podia ter dito igualmente "Fodo-te os cornos!" que não era crime. 


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