04 outubro 2019

O Juiz-Pistoleiro (9)

(Continuação daqui)


O Juiz-Pistoleiro
(Novela)


Cap. 9. Advogado de Província



-Oh rapaz...Tu pára-me com esses salamaleques!... Nunca vais chegar a lado nenhum na vida por causa desses salamaleques!...

-Peço-lhe subidas e mui respeitosas desculpas… minha Querida e Santíssima Mãezinha...

Não devia haver mãe mais diferente do filho do que esta. A mãe era directa, curta, down-to-earth. O filho, aos treze anos, exibia já as principais características de personalidade que iriam marcar toda a sua vida adulta.

Praticamente desde que exprimiu os primeiros sinais da sua personalidade, que o Adriano conseguira o duplo feito de gerar o maior consenso imaginável entre os seus pais, e também a maior divisão entre eles. O consenso é que nenhum deles queria ter um filho como ele. A divisão é que eles se culpavam mutuamente pela personalidade do filho.

Ainda o Adriano não tinha feito dez anos, e o pai já desistira, pedindo o divórcio e saindo de casa. Valeu um tio pelo lado paterno que continuou a preocupar-se com o futuro do rapaz, a acompanhá-lo nos estudos e a aconselhá-lo a escolher uma profissão.

Um dia em conversa com a cunhada, disse-lhe:

-Oh Matilde… eu não sei em que profissão tu vais conseguir encaixar este teu rapaz… com a tendência que ele tem para o salamaleque e para falar muito sem dizer nada...não vai ser nada fácil...

Foi num dia em que o tio tinha ido jantar lá a casa e, estando os três à mesa, o Adriano dirigiu-se assim à mãe apontando para o cesto do pão:

-Virginíssima e Digníssima Mãezinha… peço-lhe a subida fineza de estender a sua Delicadíssima e Finíssima mãozinha… e aproximar da minha pessoa … se tal fôr possível a Vossa Senhoria… esse Santíssimo alimento que o diabo amassou e que Jesus Cristo multiplicou…

Um homem com a personalidade do filho era o último homem que a jovem Matilde teria escolhido para marido, mas, como ela costumava dizer agora, resignada,

-Uma mulher não escolhe os filhos que tem…

Ainda na escola primária, com sete anos de idade, o pequeno Adriano já deixava antever a sua personalidade, como naquele dia em que jogava à bola e, à entrada da sua própria grande área, se dirigiu a um colega da mesma idade, companheiro de equipa e neto de um marquês, pedindo para este lhe passar a bola:

-Ilustríssimo e Realíssimo Rodrigo Mascarenhas... Sua Alteza Real … Podeis vós ter a subida fineza … de me fazer chegar o esférico ... em condições que sejam jogáveis?...

Enquanto o Rodrigo parou à espera que o Adriano concluísse o pedido, um miúdo adversário tirou-lhe a bola, chutou para a baliza e marcou golo. A equipa do Adriano e do Rodrigo perdeu esse jogo por 7-1.

Era sobre estas questões que o tio Domingos reflectia, havia anos, quando pensava no futuro do rapaz. O pai, que o via duas ou três vezes por ano, já não queria saber e considerava o filho um caso perdido, incapaz de vir um dia a abraçar qualquer profissão. Viveria toda a vida à custa da família.

Mas o tio, esse, mantinha a esperança, quanto mais não fosse para dar alento à cunhada. Noutro dia que esteve lá em casa a jantar decidiu raciocinar por exclusão de partes:

-Oh Matilde… ele para polícia não dá porque vai  tratar o ladrão por excelentíssimo senhor locupletador e pedir-lhe autorização para lhe pôr as algemas… Para notário também não porque cada escritura de compra e venda de uma casa vai ter mil e duzentas páginas quando tudo se podia dizer em três..

-Talvez para médico…,

sugeriu a mãe, na esperança de obter a aprovação do tio.

-Oh Matilde … tu estás maluca!?…Já viste o que era um doente a sangrar de um acidente e ele a tratar o homem por Excelentíssimo Paciente isto, Magnífico Doente aquilo e a informá-lo, com todos os detalhes, que a sangrar àquele ritmo iria morrer dentro de minuto e meio? … Nem penses nisso, mulher!…

O problema que ocupava o tio Domingos era um problema, na verdade muito sério - em que profissão encaixar um rapaz com uma extraordinária tendência para os títulos e os salamaleques e uma propensão absolutamente anormal para falar, falar, falar, e nada dizer?

Os anos foram passando, até que um dia, o Adriano tinha completado o nono ano, aproximava-se o momento decisivo da escolha da área de estudos, o tio telefonou exultante à mãe:

-Matilde...Já descobri!...Dás-me jantar aí hoje?...

Nessa noite, apanhando o Adriano distraído, o tio Domingos cochichou ao ouvido da cunhada:

-Matilde … Advogado de Província!... 


(Continua aqui)

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