02 outubro 2018

O Grande Mistério (VII)

(Continuação daqui)


VII. Conclusão


-O magistrado X apanhou nas orelhas dos seus superiores  e foi afastado do julgamento até que a situação se normalizasse,

e assim o Grande Mistério está desvendado. Certo?

Não. Errado. Isso não seria Mistério nenhum, certamente que não um Mistério à altura do magistrado X.

Essa resposta ajuda é a explicar o outro mistério:

-Por que é que a minha advogada não compareceu à reunião que tinha agendado comigo nas vésperas da 5ª sessão do meu julgamento e foi tão branda a interrogar o seu colega Avides Moreira?

Logo a seguir ao do juiz, o trabalho mais difícil naquele julgamento coube-lhe a ela. Os acusadores privados eram advogados, de uma poderosa multinacional - a Cuatrecasas. Os acusadores públicos, embora com o nome pomposo de magistrados, também eram advogados, embora do Estado. A representar os acusadores privados estavam dois advogados - estes pertencendo a uma sociedade de província. E entre as catorze testemunhas pelo lado da acusação, dez eram advogados.

Ela estava a confrontar a sua própria corporação. Depois daquele artigo do JN, a reputação da Cuatrecasas é que estava agora verdadeiramente em risco, bem como a de todos os advogados que participavam no processo. E eles eram tantos que constituíam uma amostra significativa da própria corporação.

A tal ponto que, após a minha condenação, a Ordem dos Advogados, através da sua secção de Matosinhos, pareceu respirar de alívio (cf. aqui).

Eu imagino portanto os sinais explícitos e implícitos que a minha advogada recebeu nos dias que antecederam o julgamento, tanto mais que neste blogue eu anunciava uma chacina:

-Vai para lá armar em esperta e nós arranjamos-te um processo na Ordem que nunca mais serás advogada na vida...

Esta é uma explicação plausível para o mistério que envolvia a advogada de defesa porque a Cuatrecasas é especialista a intimidar pessoas através de processos. Mas não para o Grande Mistério que envolvia o magistrado X.

É certo que, iniciada a sessão, o seu substituto rapidamente deu sinais de querer normalizar a situação, pondo o Ministério Público a acusar o réu e não os acusadores, ao contrário do que fizera o magistrado X.

A advogada de defesa ainda não ia a meio do interrogatório ao seu colega  Avides Moreira, e o magistrado-substituto já a estava a interromper de forma intempestiva e intimidatória, a tal ponto que ela protestou com veemência:

Sentado e calado no banco dos réus, fazia agora três meses, eu pensei:

-Escusavas de ser tão bruto, pá!... a coisa está a correr de forma tão cordial...

Depois, ao longo do dia, notei os olhares ternos que ele trocava com o Papá Encarnação, algo que o magistrado X nunca fizera. E se tinha intimidado a advogada de defesa de manhã, ele derreteu-se à tarde quando interrogou a Quequé, que era testemunha de acusação e advogada da Cuatrecasas:

-O que é que um advogado sente quando chamam ao seu trabalho uma palhaçada jurídica?

A puxar assim para o sentimento, até eu desejei ser advogado da Cuatrecasas por um momento.

E a Quequé, muito magoada:

-Sente que há interesses obscuros...até podia levar ao encerramento da sociedade... sente que não há diferenças... senti-me insultada na TV...

Sentado no banco dos réus, até me vieram as lágrimas aos olhos.

Estava a ser uma tarde de lágrimas. Tinham começado à hora do almoço por causa do meu pai.

Logo no intervalo da manhã, depois de dar por falta do magistrado X, andei desvairado pelo átrio do tribunal à procura da resposta ao Grande Mistério:

-Por que é que o magistrado X não compareceu à 5ª sessão do meu julgamento?

Não a encontrei e voltei desolado para a sala de audiências. Foi nessa altura que pensei que devia ser mais contido e refrear o meu entusiasmo. Eu queria uma resposta, mas uma resposta verdadeira. E aquele edifício tinha agora para mim o significado de um antro da mentira, onde as mentiras pareciam brotar espontaneamente até das paredes.

No intervalo para almoço saí  outra vez disparado à procura da resposta. Quase não almocei. Regressei depressa ao edifício do tribunal sempre em busca de desvendar o Grande Mistério.

Até que alguém, muito habituado aos rumores dos tribunais, talvez para me acalmar, me disse:

-Parece que lhe morreu a mãe...

Foi então que me lembrei do meu pai. Também o meu pai morreu naquele dia, 4 de Maio. Mas o meu pai  não parece que morreu, antes parecesse. O meu pai morreu mesmo.

Tinham passado 23 anos. Foram para ele as minhas primeiras lágrimas da tarde.

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