"Vários processos levados por diante pelo Ministério Público mostraram que existe corrupção em Portugal, tendo sido acusados um primeiro-ministro, o maior banqueiro, gestores de empresas com prémios conquistados pelo mundo fora e uns tantos dirigentes desportivos. É uma vitória da justiça, tendemos a concordar" (aqui)
Uma vitória da justiça, acusar pessoas?
Não é, não. A vitória da justiça é condenar criminosos (e absolver inocentes).
Ora, aquilo que tem acontecido nos processos mais mediáticos em Portugal, são suspeições (arguidos), às quais raramente se seguem acusações, e menos ainda condenações. Isto não é justiça - suspeitar de, ou acusar, pessoas inocentes. É a negação da justiça.
São as próprias estatísticas do Ministério Público que o confirmam. Entre 2014 e 2016 o Ministério Público abriu 2204 inquéritos por crimes de corrupção e conexos (é neste momento que há a constituição de arguidos, isto é, suspeitos). Daqui resultaram apenas 160 acusações, isto é, 7.3%. Não se sabe, destas acusações, quantas resultaram em condenações após julgamento. Admitamos que 2/3, isto é, 106. Então, dos 2204 inquéritos abertos, apenas cerca de 5% resultaram em condenações.
A abertura do inquérito é o momento em que, envolvendo figuras públicas, o assunto salta para os jornais. A partir daí, aos olhos de uma boa parte da opinião pública, o arguido (que é meramente um suspeito) está acusado, senão mesmo condenado. Ora, a realidade é radicalmente diferente. Apenas 5 em cada 100 arguidos são condenados.
Tomemos, por exemplo, o caso do juiz Rui Rangel. A probabilidade de ele vir a ser condenado é apenas de 5%.
Entretanto, a condenação já se fez na praça pública, expondo os arguidos - frequentemente arruinando-lhes a carreira profissional, a reputação e a vida - e aplicando-lhes medidas de coação que podem ir até à prisão.
É isto a justiça - uma "justiça" em que as penas ocorrem durante o processo e não após o julgamento? Esta é a "justiça" da Inquisição que, infelizmente, permanece na cultura e na nossa mente de portugueses.
Aquilo que tem acontecido nas últimas semanas - o lastimável espectáculo da justiça a preencher as páginas dos jornais -, não é uma demonstração da sanidade da Justiça em Portugal. É uma demonstração da sua insanidade, que atingiu o auge no episódio em que um ministro é acusado num dia de crimes gravíssimos por factos insignificantes e desacusado poucos dias depois.
Este espectáculo mediático tem pelo menos uma vantagem. Trouxe finalmente a justiça para o escrutínio público porque desde a fundação da democracia em Portugal que a justiça foi sempre o menos escrutinado dos três poderes do Estado.
A comunicação social está, pelo menos, a mostrar aos portugueses a Justiça que eles têm. E se, de todas as actividades do Estado, a Justiça era aquela em que os portugueses menos confiavam, a partir de agora provavelmente não confiarão mesmo nada. Um magistrado do Ministério Público a ser julgado por corrupção? Juizes a venderem sentenças?
O que é que se passa aqui?
Passa-se o seguinte: por falta de tradição, e de escrutínio público, a Justiça (ao contrário dos outros poderes do Estado), nunca se adaptou à democracia. Permanece ainda, em vários aspectos, a Justiça herdada do Estado Novo e, nalguns casos, da própria Inquisição.
Talvez, a partir de agora, os portugueses abram os olhos, e finalmente possam começar a construir um sistema de justiça democrático, A primeira coisa que têm de reconhecer é que, aquilo a que estão a assistir pelos jornais e pela televisão, não é isso - um sistema de justiça democrático -, mas exactamente o seu oposto.
Se eu acredito que o vão conseguir?
Não estou nada certo. A cultura pesa demais. E a cultura é anti-democrática.
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