A jurisprudência do TEDH concede um espaço muito amplo à liberdade de expressão. A razão é que a liberdade de expressão é a âncora da democracia. A democracia pode viver sem muitas liberdades (como a liberdade de consumir drogas, de abortar, de os homossexuais casarem ou adoptarem crianças), mas a democracia deixa de existir quando não existe liberdade de expressão.
Mas não haverá limites?
A resposta é sim e leva-me de volta ao meu case study.
Em posts anteriores, expliquei como é que um caso destes é julgado sob uma jurisprudência de cariz autoritário (ou ditatorial ou fascista ou inquisitorial) e vale a pena resumir os aspectos principais.
Parte-se do princípio de que o direito à honra prevalece sobre o direito à liberdade de expressão (que, em regimes autoritários - como era, por exemplo, o de Salazar -, nem sequer existe). Coloca-se o ónus da prova sobre o réu. A única maneira de ele ser absolvido é provar que são verdade as expressões que proferiu (exceptio veritatis). Como frequentemente não se distingue entre juízos de facto (v.g., o Rangel roubou-me a carteira) - para os quais é possível provar a verdade - de juízos de valor (v.g., o Rangel é um politiqueiro) - acerca dos quais, por natureza, essa prova é impossível -, as probabilidades apontam para que, no fim, o réu seja condenado: ele não conseguiu provar que o Rangel é um politiqueiro (tivesse o ónus da prova sido colocado na acusação e, obviamente, o Rangel também não teria conseguido provar que não é um politiqueiro).
Na tradição democrática em que assenta a jurisprudência do TEDH é tudo ao contrário. Primeiro, o direito à liberdade de expressão prevalece sobre o direito à honra. Segundo, o ónus da prova compete à acusação, e não ao réu. Terceiro, existem limites à liberdade de expressão, mas esses limites são muito estreitos e estão definidos no nº 8 da jurisprudência.
São dois. Primeiro, o réu, ao proferir as declarações consideradas ofensivas deve estar a prosseguir um "objectivo legítimo" e a contundência das expressões utilizadas deve ser proporcional a esse objectivo. Segundo, qualquer restrição à liberdade de expressão do réu deve corresponder a uma "necessidade social imperiosa".
Por outras palavras, no caso em apreço:
A acusação vai ter de provar, primeiro, que o réu não estava a prosseguir um "objectivo legítimo". Dificilmente vai conseguir. O réu, ao proferir aquelas declarações, fê-lo na qualidade de presidente de uma associação humanitária, visando a construção de um hospital pediátrico por via mecenática (*). Estava a prosseguir um interesse mais do que legítimo - estava a prosseguir um interesse público, porque à associação de que é presidente, foi o próprio Estado português que reconheceu o estatuto de utilidade pública.
Segundo, a acusação vai ter de provar que em resultado daquelas declarações resultou algum cataclismo social que é imperioso prevenir - um pânico social, uma epidemia de gripe das aves, uma onda de violência racial, a divulgação de um segredo de Estado (ou quem sabe, os incêndios de Pedrógão Grande, o roubo de material de guerra em Tancos ou o terramoto de 1755).
Só num caso destes - o de responder a uma "necessidade social imperiosa" - o réu não poderia ter dito o que disse, e seria condenado.
(*) Este foi o segundo obstáculo que encontrei no caminho para fazer a obra do Joãozinho, e que ultrapassei da maneira que se viu. Já vou no quarto, que ainda não ultrapassei. Todos tiveram o dedo da administração do HSJ (o Rangel e a Cuatrecasas eram, na altura, assessores jurídicos da administração do HSJ). Neste último obstáculo, já não é por interpostas entidades, é a própria administração do HSJ que se pôs à frente a impedir o avanço dos trabalhos desde há quase dois anos.
Porquê? Não sei. Nem me interessa saber
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