05 dezembro 2017

dondocas

Eu vou agora retomar este artigo escrito num blogue, aparentemente da Madeira, para distinguir entre juízos de facto e juízos de valor e procurar determinar se o Rangel é ou não é um cabrão. Pelo caminho, procurarei chegar à essência do que é a democracia e contrastá-la com a essência do que é um regime autoritário.

Um juízo de facto refere-se a algo que aconteceu (v.g., o Rangel roubou-me a carteira), é um juízo substantivo (o carácter substantivo está na "carteira"), ao passo que um juízo de valor é um juízo adjectivo que imputa uma certa qualidade ou falta dela a um sujeito (v.g., o Rangel é um cabrão).

Um juízo de facto é possível submeter à prova da verdade (exceptio veritatis) e provar que o Rangel me roubou (ou não)  a carteira (*). Já em relação a um juízo de valor, sendo uma imputação apreciativa ou depreciativa, é puramente subjectivo e não está sujeito ao critério da verdade. É uma mera opinião, um "eu acho que...".

Evidentemente que o autor do artigo acha que o Rangel é um cabrão, mas há outras pessoas - a começar pelo próprio Rangel - que acham que ele não é um cabrão. E mesmo que se juntem 500 pessoas de um lado e 20 mil do outro, nada fica provado acerca de  saber se é verdade ou não que  o Rangel é um cabrão. A maioria é um critério de decisão, não é um critério de verdade.

Suponhamos, por um momento, que estamos no antigo regime, e que o Rangel é um alto dignitário do regime salazarista.  O autor do artigo vai ser condenado por difamação, não porque se tenha provado - uma prova por natureza impossível - que "o Rangel não é um cabrão", mas porque a opinião do Salazar, que atribuiu altas funções de Estado ao Rangel, é a de que ele não é um cabrão, mas um grande político e um insigne jurista.

Vê-se aqui a natureza de um regime autoritário e também o seu maior defeito. Um regime autoritário (e católico, como era o de Salazar) assenta na verdade e vai à procura da verdade em cada situação. O seu maior defeito - e é por aí que ele geralmente cai - é o de erigir em verdades (v.g., "o Rangel não é um cabrão") aquilo que são meras opiniões do ditador.

Num regime democrático, o autor do artigo seria absolvido. Ele está a participar no debate democrático, parece ser um nacionalista convicto (e tem todo o direito de o ser) e viu o seu nacionalismo agravado por o Rangel ter ido denunciar o Governo de Portugal num areópago internacional. Chamou-lhe cabrão e também macaco e ainda filho da puta - na realidade,  grandessíssimo filho da puta. Tem o direito a fazê-lo, as ofensas são consentidas no debate democrático (aqui, nº 2)

O Rangel que aguente. A democracia não é para dondocas. Pelo contrário, é uma regime político bem viril, oriundo das sociedades de predominância masculina (protestantes: "Solo Christus") do norte da Europa, por oposição às sociedades de predominância feminina (católicas: "Ai Nossa Senhora") do sul.

Ao contrário dos regimes autoritários e católicos, como o de Salazar, que assenta na verdade, a democracia liberal assenta na opinião.

Supunhamos que eu estou na fila para votar numas eleições presidenciais e voto no candidato X porque o considero o melhor candidato para desempenhar essas funções. Atrás de mim está um outro eleitor que vota no candidato Y porque o considera o melhor para ser PR. Cá fora, entramos em discussão sobre quem é o melhor homem para PR, o candidato X ou o candidatado Y. Não vamos chegar a conclusão nenhuma porque ambos os nossos votos exprimem juízos de valor acerca de quem é o melhor homem para ser Presidente da República.

Se fosse possível determinar qual é, de verdade, o melhor homem para ser PR - por exemplo, o senhor Z - nós não teríamos necessidade de eleições democráticas para nada. Púnhamos o senhor Z a Presidente da República e o assunto estaria arrumado. Mas, então, teríamos um regime ditatorial, e não mais um regime democrático.

Um regime democrático assenta na opinião - e não na verdade - e numa opinião que se possa exprimir livremente. Daí o valor essencial da liberdade de expressão - uma liberdade que se exprime nas urnas e também por outros meios, como a comunicação social.

Não é de mais insistir. O regime democrático não é para dondocas. Quem se ofende facilmente é melhor não se pôr no espaço público. Fique em casa. O TEDH na sua jurisprudência chega ao ponto de dizer que a comunicação social é o "cão-de guarda" (do inglês "watchdog") da democracia (aqui, ponto 5).

Ora, um cão de guarda serve para quê?

Para morder.


(*) O Rangel anda a procurar roubar-me a carteira mas é por via judicial com a indemnização que me pede.

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