05 outubro 2013

Que Deus guarde o L.

Eram quatro irmãos nascidos na baixa classe média lisboeta.

Os primeiros três nasceram muito próximos uns dos outros, com uma diferença de cerca de dois anos. O mais novo, o L., foi um filho serôdio do casal. Nasceu no mesmo dia do segundo, mas doze anos mais tarde, fazendo uma diferença de catorze anos do primeiro e de dez do terceiro.

Os três primeiros formavam uma verdadeira comunidade. Frequentaram ao mesmo tempo as mesmas escolas, brincavam na rua entre eles e com as outras crianças, encobriam-se mutuamente perante os pais.

Saíram todos de casa ainda adolescentes para prosseguirem as suas próprias vidas e todos têm hoje vidas decentes, famílias estáveis, uma profissão, filhos e netos. O L. ficou sozinho com os pais.

Os pais, que tinham educado tão bem os três filhos mais velhos, agora com mais idade e menos energia, talvez se tivessem convencido que a educação do mais novo seria feita por inércia, por uma espécie de piloto automático. Enganaram-se e facilitaram de mais. É sempre preciso recomeçar de novo na educação de um ser humano, cada um é diferente dos outros. E deram-lhe muita liberdade.

Os tempos também não ajudaram. O L. nasceu em 1966 e apanhou os anos de confusão e de desorientação que se seguiram ao 25 de Abril no início da adolescência. A ideia prevalecente e nova era a da liberdade, incluindo a liberdade de escolha.

E o L. escolheu livremente. Nunca foi longe nos estudos e, em breve, estava envolvido na droga e também no álcool. Mais tarde casou, mas o casamento não durou muito. Resultou um filho, hoje com 15 anos.

A partir de certa altura, os pais começaram a pedir ajuda aos filhos mais velhos, em favor do mais novo. Os irmãos mais velhos responderam e as primeiras ajudas foram em dinheiro (estaria ele com dificuldades em  sustentar a mulher e o filho?), mas, com o tempo, compreenderam onde é que ele gastava o dinheiro. Os primeiros pedidos vieram a título de empréstimo, mas os empréstimos nunca foram pagos.

Depois de se divorciar foi viver para casa da mãe, que ficara entretanto viúva. Era a casa onde todos os filhos tinham sido criados, em Alvalade,  uma casa alugada há cerca de 50 anos à Segurança Social. Após a morte do pai, os três irmãos mais velhos juntaram-se e compraram a casa, que ofereceram à mãe. Finalmente, a mãe tinha uma casa, a casa onde criara todos os seus filhos.

Com o L. divorciado, envolvido no alcoolismo e na droga,  os irmãos mais velhos associaram-se para pagar um colégio ao D., o filho do L.,  então com seis anos. O irmão mais velho servia de encarregado de educação do sobrinho. E os irmãos mais velhos também  entregavam à mãe uma mensalidade generosa para que ela pudesse viver os seus últimos anos  livre de preocupações financeiras e  assistir às necessidades do L. que se mostrava incapaz de manter um emprego estável.

A mãe não descansou enquanto não conseguiu que o L. se submetesse a um tratamento, ele tinha agora 39 anos. Finalmente conseguiu. Depois de  um tratamento demorado, o L. conseguiu vencer o vício do alcoolismo e da droga. Desde há oito anos que não consumia nem álcool nem drogas.

A mãe faleceu dois anos depois de ele estar curado. Tinha cumprido a sua última missão.

A casa era agora dos quatro irmãos, que a cederam ao L. para que ele pudesse continuar a viver lá e reorganizar a sua vida, receber o filho e eventualmente casar-se de novo. Ele mantinha agora um emprego estável, embora modesto. Não voltou a casar. Os irmãos continuavam a ajudá-lo para que ele pudesse ter uma vida melhor e contribuir para o sustento e a educação do D., que vivia com a mãe.

Há cerca de mês e meio, em pleno mês de Agosto e férias,  a família foi alertada subitamente por uma deterioração abrupta do estado de saúde do L. Tinha emagrecido subitamente e queixou-se a uma sobrinha de dores fortes no abdómen.

Os médicos da família, e a família inteira, movimentaram-se imediatamente para lhe prestar assistência e fazer o diagnóstico. O diagnóstico foi avassalador: cancro no fígado em estado terminal.

O L. tinha deixado de beber há oito anos, mas vinte anos de excessos tinham deixado as suas marcas.

Os irmãos mais velhos tinham agora 61, 59 e 57 anos, o L. 47. Um deles não consegue deixar de pensar acerca da importância da comunidade. Tivesse o L. nascido e sido criado junto com os outros, e nada daquilo teria acontecido. À primeira tentativa de se meter na droga tinha apanhado um valente par de estalos de algum dos irmãos mais velhos. E, no caso de reincidência,  teria sido feita queixa ao pai, que lhe teria aplicado um outro par, com a mão grande que ele tinha, e que doía muito mais.

O L. faleceu anteontem no IPO, em Lisboa. Todos os que o conheciam, incluindo os colegas de emprego, que compareceram ontem, em massa, no velório, dizem que o L. era uma excelente pessoa, que nunca dizia que não, bondoso, sempre prestável, sempre pronto a ajudar os outros, que nunca fez mal a ninguém - excepto, talvez, a ele próprio.

O funeral é  hoje à tarde, sai da Igreja do Campo Grande, onde todos os irmãos foram baptizados, para o cemitério dos Olivais.

O L. era o meu irmão mais novo. Faríamos ambos anos no próximo dia 6 de Janeiro, eu 60, ele 48.

Que Deus guarde o L.

35 comentários:

Anónimo disse...

Fiquei comovido.
Abraço para si e seus irmãos.
eao

CCz disse...

Os meus sinceros sentimentos.

Paz à sua alma

zazie disse...

Os meus sentimentos.

Anónimo disse...

ABÇ

Joaquim

Ricciardi disse...

Na verdade em todas as familias ocorrem coisas dessas. Na minha foi com um primo mais velho que formava uma comunidade com outros mais velhos.
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Eu desisti de perceber os motivos. Culpa dos pais, dos irmãos...?

- Nada disso, existem casos para todos os gostos e feitios; a maior parte das vezes tem a ver com oportunidade, sorte e azar e com a condição quimica pessoal do corpinho de cada um que resiste mais ou menos a influencias.
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É engraçado, mas o esforço desse meu primo para resistir à bebida era dantesco. Desde sempre. Nós bebiamos o mesmo em adolescentes e ele fazia um esforço muitssimo maior do que eu para não beber mais. Para mim era simples, para ele era uma empreitada.
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E depois vem o momuntum. Os amigos. Um gajo não os escolhe. Eles aparecem na escola e um gajo é envolvido. Eu tive sorte, ele teve um azar dos diabos porque foi calhar numa turma de pessoal mais dado a bebidas e noitadas.
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Rb

Ricciardi disse...

E o mérito não está em não pecar.
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Está na capacidade de resistência.
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Por isso considero o meu primo, apesar de se ter perdido, um tipo mais meritoso do que eu. Para mim é fácil não beber, para ele não é.
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Não me parece que Deus avalie os nossos pecados sem considerar o todo. E isto é escrito naquela parabola da mulher pobre que dá um esmola grande em proporção com o seu salario, mas muito menor do que do rico. Na verdade o esforço dela é imensamente maior.
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Rb

rui a. disse...

Um forte abraço, meu caro Pedro.

JSP disse...

Comovente, Professor.
Os meus sentimentos.

Unknown disse...

Os meus sentimentos, Professor.

Um abraço.

Carlos Guimarães Pinto disse...

Os meus pêsames, professor.

marina disse...

lamento muito.

Vivendi disse...

Uma verdadeira família é assim.
Unida nos bons e maus momentos.

Os meus sentimentos.

Anónimo disse...

Sinto muito.E como sinto.Vivi há dois anos a perda do meu irmão dez anos mais novo que eu. sei bem do que fala,até ao fim ele foi sempre 'o menino'num mundo de utopias. Doeu muito e continua a doer. Ficaram cá dois (meus sobrinhos) muito queridos mas que terão de fazer um percurso doloroso de viver uma realidade para a qual não foram educados.
Um abraço mfm

Cfe disse...

Meus pêsames, professor.

Luis Ilhéu disse...

meus pêsames Professor
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"Um deles não consegue deixar de pensar acerca da importância da comunidade. Tivesse o L. nascido e sido criado junto com os outros, e nada daquilo teria acontecido."
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Professor conheço um caso, tambem de uma familia com quatro filhos, dois deles gémeos, média baixa, em que a diferença de idades não se pode colocar para o sucedido. Mas uma coisa é certa, em ambas as situações, a comunidade liderada pela Mãe, nunca abandonou os seus apesar de todo o sofrimento, de todos os desaires...a família...é...

Luís Ilhéu

Anónimo disse...

Os meus sentimentos.

Anónimo disse...

Os meus sentimentos, Professor.

Álvaro Oliveira

Anónimo disse...

que o seu irmão descanse em paz...

As minhas condolências
R.A

Euro2cent disse...

Há uns estrangeiros que dizem que uma alegria partilhada é multiplicada, e uma tristeza partilhada é dividida.

Ainda por cima, o Campo Grande de Lisboa - quando ainda havia carros eléctricos a circular sobre carris nas faixas laterais - é um dos meus paraísos perdidos.

Condolências.

Lura do Grilo disse...

Uma dor imensa que só a Fé ajuda a vencer

Francisco disse...

Nestas situações de luto, em que se olha para trás com outros olhos, não há só sentimento de tristeza mas também de admiração.

Como o PA sempre fala na família como comunidade e pelo que dá a entender pelo post presumo que tenha a sorte de ter uma família unida e que também sinta uma admiração especialmente forte nesta altura, que ajuda a aleviar a tristeza.

Os meus sentimentos

Emanuel Lopes disse...

Razão tiveram os meus pais em ter os 4 filhos todos seguidos. A relação que mantém com os seus irmãos mais chegados é parecida à relação que eu tenho com os meus irmãos, embora 2 deles, por opção, já estejam do outro lado do Atlântico. Os meus profundos sentimentos e obrigado pela lição de vida. Certamente que a terei em conta, se um dia tiver a sorte de constituir uma prole numerosa.

Arrojinha disse...

Tio, que texto bonito. É a mais pura verdade, realidade, dura e crua. Um exemplo para muitos e a prova de que, como tantas famílias por aí, também temos os nossos problemas. Há que saber resolvê-los mantendo-nos unidos e ajudar quem precisa sem esperar nada em troca. O L. é um exemplo de vida, para o bem (porque era um ser extraordinário) e para o mal (uma vez que teve a infelicidade de cair nesse abismo de vícios).
Fizemos tudo o que podíamos...
Um beijinho arrojado :)

Aninhas disse...

Lamento muito, fiquei comovida com a história. Infelizmente as doenças não escolhem pessoas nem idades. É triste saber que, quando finalmente iria recomeçar a vida, o L. faleceu... Muito triste. Os meus sentimentos. Tenho a certeza que o seu espírito continuará vivo através dos 3 irmãos, que tanto gostavam dele e o ajudaram :) Beijinhos, tio da Arrojinha :)

Anónimo disse...

Os meus sentimentos drº Arroja.

Que o Ltenha a glória eterna.

Luxor

Anónimo disse...

Caro,
Que Deus o guarde.
Que Deus nos guarde.
Paz à sua ALMA.

Anónimo disse...

Obrigado.
PA

Unknown disse...

Os meus sentimentos.

O seu irmão L. foi, parece-me, um lutador! Conheço vários outros casos dessa geração do pós-25/4 onde as pessoas em causa morreram directamente por OD. O exemplo que o seu irmão L. deixa não pode ser mais diferente!

Rezarei pela sua alma.

Rui Alves disse...

Estimado Professor
Os meus sentimentos, e que possa finalmente o seu irmão descansar em paz.

Tiago Mendes disse...

Comovente e enriquecedora partilha. Os meus sentimentos. Que o seu irmão descanse agora em paz.

Pedro Sá disse...

Os meus sentimentos...

Miguel disse...

Os meus sentimentos. Que descanse em paz.

Luís Lavoura disse...

Os meus pêsames.

(Não concordo com essa teoria do tabefe dado pelo irmão dois anos mais velho. Mais rapidamente o tabefe seria dado por um irmão doze anos mais velho.)

(A minha mãe também foi uma filha tardia. Não surgiu daí particular mal ao mundo.)

José** disse...

Prof,

Os meus sentimentos.


jp.

LG disse...

Ô Prof., meus sentimentos! Somente hoje (10/10/13) é que li este post. Vou rezar pelo vosso irmão.
Receba o meu fraternal abraço.
LG