25 janeiro 2013

Padrão-tudo

Imaginemos que em determinado território vigora o padrão ouro. Só existem depósitos bancários no sentido mais estrito do termo, com reservas a 100% e taxas de juro negativas.  Um dia, um construtor civíl decidido a criar um novo edifício procura quem lhe empreste o ouro necessário para o fazer. Após várias tentativas falhadas, ocorre-lhe uma ideia: titularizar os futuros apartamentos e pagar a empregados e fornecedores com esses títulos. Chama-lhe títulos apartamento e cada um vale 0,1% duma futura venda. Ao princípio desconfiados, alguns fornecedores fazem as contas e concluem que quando os apartamentos estiverem concluidos até conseguirão reaver mais do que recebariam imediatamente se fossem pagos em ouro. Os trabalhadores fizeram as contas e também resolveram aceitar o pagamento em títulos-apartamento, influenciados pelo facto de o merceeiro da urbanização, perante a oportunidade de fazer negócio, ter garantido que aceitaria esses títulos na sua loja. Eventualmente os títulos começam a circular na cidade como moeda de troca, inclusivé para...comprar ouro. Acabado o prédio, vendidos os apartamentos, os donos dos títulos podem redimi-los com o empreiteiro.
Motivado com o sucesso da primeira operação, o empreiteiro decide alargar a experiência, desta vez para um empreendimento. Os novos títulos-apartamento são imediatamente aceitas como termos de troca um pouco por toda a cidade. O merceeiro, vendo o sucesso daquela moeda decide fazer algo semelhante, lançando cupões-mercearia. Em vez de pagar o  almoço no restaurante com 5mg de ouro, dá um cupão ao dono do café, valendo 6mg de ouro em compras na mercearia. Eventualmente, os cupões-mercearia também começam a circular. A ideia alastra e começam a aparecer diferentes moedas de troca. O valor do ouro cai, levantando suspeitas que toda aquela criação monetária estava a causar inflação. Mais tarde descobrem que afinal o ouro é que estava a perder valor porque, antes, as pessoas eram obrigadas a guardar ouro em casa para terem com que transaccionar e agora basta-lhes utilizar os cupões.
O alastrar de moedas lança alguma confusão, até que o empreiteiro original tem mais uma brilhante ideia: criar uma unidade única de medida: o "délar". Ele oferece-se para guardar os títulos apartamento, dando 10 délares por cada um. Pelos cupões-restaurante paga 7 délares e pelos títulos-alfaiate entretanto lançados paga 3 délares.
Os délares passam a circular em paralelo com o ouro. Até existem casas de câmbio em que se pode trocar délares por ouro e vice-versa. Rumores de que os apartamentos podem não ser tão bons como planeado ou que demorarão mais tempo a fazer, levam a que o valor do délar caia. Entretanto é criada a "lébra", por um empresário que garante que não irá emitir lébras ao alfaiate, que tende a não entregar as roupas aos clientes conforme o acordado.
As notícias desta criação monetária chegam ao governo central que envia um emissário à cidade. O emissário vai ao banco emissor de délares e pergunta ao dono: "Mas você não sabe que por lei tem que ter 100% de reservas do dinheiro depositado? Pelas minhas contas, à cotação actual, você só tem 5% dos délares que criou em barras de ouro.", ao que ele responde "Errado, os délares emitidos têm reservas a 100%: 5% em ouro, 40% em apartamentos, 30% em mercearias, 15% em têxteis e 10% em várias outras coisas. Porquê um padrão ouro, quando podemos ter um padrão-tudo?".

12 comentários:

Luís Lavoura disse...

Excelente post.
De facto, como fazia notar há pouco tempo um artigo no Economist, o padrão-ouro é uma coisa estreitamente conectada ao aparecimento de Estados, uma vez que, por os metais preciosos serem difíceis de manipular, os soberanos tinham interesse em utilizar como padrão esses metais, o que lhes permitia cunhar moeda que os representava - moeda que mais tarde, evidentemente, falsificariam ou desvalorizariam.
Por contraste, os povos, sempre que não subjugados por Estados, tendem a utilizar como moeda coisas mais simples e menos atreitas a falsificações.
Os metais preciosos têm sempre esse inconveniente: entre o seu possuidor e o utilizador final necessitam sempre de um intermediário, que os utiliza para cunhar moeda. Seja esse intermediário um Estado ou um privado, poderá sempre falsificar a moeda.

miguel disse...

Boas,
tudo isto depende da venda do apartamento, certo?
E se o empreiteiro não conseguisse vender o apartamento?

Carlos Guimarães Pinto disse...

Nesse caso, o valor dos délares baixava. Da mesma forma que se se descobri-se um material alternativo ao ouro para uso industrial, o valor do ouro baixaria. O valor do délar estaria ligado àquilo que representa (dívida), assim como o ouro.

CN disse...

CGP, isso constitui #credit-money# e nunca constituiria moeda em si mesmo.

miguel disse...

Parece-me a mim que neste caso, as pessoas que adquiriram os títulos ficariam sem o dinheiro, ou então dividia-se o apartamento pelos detentores dos títulos. É claro que se o empreiteiro acabasse por vender, por um preço mais baixo do que aquele que todos pretendiam, o valor dos títulos caia e era um risco que todos corriam, à partida.

Carlos Guimarães Pinto disse...

Credit money, sem dúvida, emitido tendo como colateral bens futuros (ou dívida). O que é que aconteceria se se descobrisse que essa dívida afinal vale menos? A moeda desvaloriza. O mesmo que aconteceria ao ouro se fosse descoberto um material alternativo na joalharia e passasse a valer menos.

mm disse...

então mas assim isso do credit money não é a mesma coisa do que a titularizacão do crédito que, quando deixada ao Deus dará, pode levar onde bem sabemos?

NT disse...

parece inspirado na doutrina das 'Real Bills' ...

CN disse...

"O mesmo que aconteceria ao ouro se fosse descoberto um material alternativo na joalharia e passasse a valer menos."

CGP, o valor do ouro como meio de troca vale por si mesmo, não é a joalharia que lhe confere esse valor. Influência mas não determina.

Quando referes esse recebimento futuro em que unidade/moeda seria esse recebimento?

Anónimo disse...

Gralha na primeira frase.

Carlos Guimarães Pinto disse...

"Quando referes esse recebimento futuro em que unidade/moeda seria esse recebimento?"

Inicialmente, em ouro. Ao fim de algum tempo já seria em "délares". O ouro, ou outra moeda em circulação, seria a âncora inicial de confiança para a nova moeda. Uma vez estabelecida como uso corrente, os pagamentos dos empréstimos já poderiam ocorrer na moeda-crédito.

Nuno Lebreiro disse...

Pergunta de não economista: uma das vantagens do ouro não é a sua não-falsificação? Os títulos apartamento podem ser produzidos independentemente (de má-fé)da quantidade real de apartamentos. Não é certo que o ouro, por a sua multiplicação implicar uma falsificação mais facilmente demonstrável, representa uma segurança maior para aquele que o detém?