31 março 2012

obediência e liberdade

Na sua crónica de ontem no Público, o Miguel Esteves Cardoso discute uma frase que o Papa disse em Cuba: "A obediência na fé é a verdadeira liberdade". O MEC diz tratar-se de uma frase que parece saída do Newspeak de 1984 de Orwell e que o Papa deveria saber que o ser humano desconfia quando ouve dizer que a "verdadeira liberdade" é qualquer coisa que não se associa imediatamente à liberdade, neste caso a obediência. E conclui assim: "Por outro lado, é verdade, quando se obedece a uma fé, abdica-se dessa liberdade, e fica-se livre para fazer outras coisas".

Eu não estou certo que quem não compreendeu a afirmação do Papa tivesse ficado a compreendê-la depois da explicação do MEC. Em particular, aquela ideia de que para se ficar livre tem de se abdicar da liberdade, não lembraria ao próprio Orwell. O milagre é que não se tem de abdicar de nada.

O propósito deste meu post é procurar explicar a frase do Papa. O assunto tem para mim um interesse mais do que incidental, e respeita a saber qual é o lugar do pensamento concreto e do pensamento abstracto para chegar à verdade. O Papa exprimiu um pensamento abstracto - nem podia ser de outro modo nas circunstâncias em que se encontrava -, um pensamento que se refere à liberdade de todos e não concretamente à  de ninguém, e um pensamento que  generaliza, aplicando-se, em princípio a todos.

Ora, a maior parte das pessoas não tem capacidade para captar o significado de um pensamento abstracto porque não está treinada para isso, a sua vida faz-se de pensamentos concretos. Por isso, para chegar ao abstracto é preciso começar com  um exemplo concreto, e só a partir daí, sendo legítimo, generalizar, isto é, passar ao abstracto. Está aqui talvez a razão por que Cristo falava ao povo em parábolas, as quais se referiam a  situações concretas da vida e com as quais o povo estava familiarizado.

Passemos agora à explicação da frase do Papa. Como é que eu faria para explicar  o que é que o  Papa quis dizer? Começaria por remeter para este  post onde descrevo o processo pelo qual eu próprio me tornei livre ou autónomo. E o que é que há de essencial nesse processo? Obediência. Foi obedecendo à minha mãe e a muitas outras pessoas, mas principalmente a ela, que eu me tornei livre. Um dia, ela terá decidido que era altura de me ensinar a comer sozinho. Ter-me-à sentado à mesa e dito: "Agora, pegas no garfo com a mão esquerda, na faca com a mão direita ...". Foi assim, através de múltiplos episódios como este - obedecendo -, que eu me tornei livre.

O Papa fala em "obediência na fé" e era por fé que eu obedecia à minha mãe - a fé de que ela era, na verdade, a minha mãe, algo que eu nunca conseguiria provar só pela razão. Eu acreditava que ela era a minha mãe porque ela me disse muitas vezes que era a minha mãe. Esta crença era, em última instância, um acto de fé da minha parte.

Eu tornei-me livre obedecendo na fé. E você? Você, se é livre, fê-lo por um processo semelhante, obedecendo àqueles que lhe queriam bem e que tinham a liberdade para lhe dar - a sua mãe, o seu pai, os seus outros familiares, os seus professores, os seus amigos, etc.   Por isso, está certa a afirmação do Papa: "a obediência na fé é a verdadeira liberdade". 

Neste processo de obediência na fé, e  que me tornou livre, onde é que está Deus?

Esta é a pergunta mais fácil de responder. Está, em primeiro lugar, na minha mãe (mas também em todas as outras pessoas e coisas da vida que participaram neste processo). Pois foi ela que, em primeiro lugar, e em relação a mim, deu realidade a Deus: "ama o teu próximo como a ti mesma".  

3 comentários:

Ricciardi disse...

Bem, quer dizer, de facto um tipo obedece ah mãe e se nao obedecer provavelmente leva uma galheta. Umas quantas galhetas, verbais ou físicas, somadas, fizeram de nos seres obedientes. Mais tarde vem a idade da desobediência. As galhetas já nao se podem aplicar, mas subsistirah o respeito. Mais tarde ainda o que a mãe diz e quer já só eh correspondido em pequena parte. Segue-se uma fase em que já nao se admite "sugestões". Algumas ateh se levam a mal. A vida eh nossa e o caminho a trilhar tambem. Ela continua a querer o nosso bem, mas a forma de chegar ao destino nao pode ser aquele que a mãe aponta. Mais perto dos quarenta anos voltamos a considerar a opinião da mãe, se bem que só para certas e determinadas coisas.
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Portanto, um tipo só eh obediente durante a infancia e enquanto nao tem autonomia para deixar de o ser. Autonomia intelectual e física. Dai que ser obediente na Fe eh uma contradição de termos. Ou a gente tem Fe ou nao tem. Se a tem, a obediência eh desnecessária, por redundante, se nao a tem, tambem nao a vai ter de forma imposta ou dogmática.
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Por isso eh que eu acho que sou um gajo desobediente. Um católico que nao obedece a todos os dogmas da Fe. Um católico coiso, portanto. Um perfeito católico agnóstico, deísta, devoto dos santos e das santas e de todos os outros homens e mulheres que nos deram o exemplo de bem, de todos os credos. Um católico, porque dou bom credito a Cristo e aceito a Igreja como sendo uma associação de bem, que promove o exemplo, nao obstante todos os vampiros e demônios que por lá passaram e que atestam, se mais nao for, que se trata de uma organização bem humana ( esta eh a minha parte herege).
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Rb

Anónimo disse...

Caro PA,

Citando de cor o Francis Bacon:

Para nos elevarmos acima da natureza, primeiro temos de lhe obedecer.

Podemos racionalizar este princípio sem recorrer á fé. Toda a nossa liberdade está tabelada por princípios a que temos de obedecer.

Pedro Sá disse...

Este post apenas demonstra o total desconhecimento que o PA tem acerca do conceito teológico-católico de liberdade. É que não tem nada a ver com isto.