28 março 2012

está na Comunidade

We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.

Nesta frase, uma das mais citadas da Declaração de Independência dos EUA, a Liberdade é um dom que Deus dá a cada homem. A frase tem a sua demagogia e é dela que eu pretendo tratar em primeiro lugar. Num post anterior referi que uma ideologia amputa sempre a realidade - e no caso da ideologia liberal anglo-saxónica, de que a frase citada é frequentemente apresentada como slogan, a parte amputada da realidade, ou fortemente desvalorizada, é a Comunidade. Daqui resulta que o discurso ideológico, partindo de uma omissão - a da Comunidade, neste caso - constrói uma realidade aparente, às vezes muito apelativa, mas que é falsa.

Daquela frase, segundo a qual a liberdade está em cada homem, e foi-lhe dada por Deus, os pais fundadores americanos passam à construção de um edifício político em que uma da prioridades principais é defender a liberdade de cada homem das instromissões indevidas da comunidade, ou da instituição que a representa - o Estado. Liberdade e Comunidade opõem-se, a Liberdade é defendida não já contra a  Igreja, mas contra a Nação.

É uma verdade evidente para os pais fundadores americanos que a Liberdade existe em cada homem e que foi lá colocada por Deus. Mas como, como é que Deus fez isso? Esta questão nunca foi posta e portanto também nunca foi respondida. Talvez eles respondessem que a questão não interessava. Mas eu se lá estivesse no meio deles, tê-la-ia levantado. A questão interessava-me, para saber como é que Deus pôs a liberdade em mim próprio. Concordando embora que a Liberdade existe em cada homem e foi dada a cada homem por Deus, eu teria levantado o braço e perguntado: "Mas como é que Deus lhe deu a Liberdade?". E enquanto esta questão não fosse respondida, eu não consentiria que o texto saísse a público. É talvez por esta razão que os ideólogos nunca gostaram de ter católicos por perto.  

Aquele texto da Declaração de Independência é um texto profundamente masculino, só poderia ter sido pensado e escrito por homens. É que se fica com a ideia de que Deus colocou a Liberdade em cada um de nós de sopetão, por um acto súbito e definitivo, uma espécie de orgasmo divino. E, na verdade, a participação masculina na criação resume-se a um acto - o orgasmo. Para uma mulher é diferente, é um processo - um processo de gestação - longo e demorado, cheio de peripécias e de transformações, e também de algumas dores. Aquilo que ressalta daquele trecho da Declaração de Independência é que existe um Pai que dá liberdade e existem filhos, que a recebem. Mas não existe  Mãe, não há rasto de mulher. 

A Liberdade existe em cada um de nós, foi o Pai Criador que a deu. Mas como?

Eu sou um homem livre - autónomo, que é o significado moderno de liberdade -, mas como é que eu recebi essa liberdade, essa autonomia? Para responder, tenho de voltar ao ventre da minha mãe. Imagino que tinha lá alguma autonomia, mas não muita. Podia mexer-me e pouco mais. Quando nasci, foi  um  passo em frente na minha autonomia ou liberdade, fiquei separado fisicamente da minha mãe, e não mais fechado dentro dela. Eu não estou mais recordado do que fiz logo depois de nascer. Mas, observando  ao longo da minha vida - a mais recente observação foi este fim de semana -  o que fazem aqueles que são feitos da mesma massa do que eu, presumo que tenha procurado as mamas da minha mãe e que as tenha chupado com quanta força tinha. Para quem estivesse de fora a observar, não poderia concluir que estava ali um ser humano de quem se pudesse propriamente dizer que era livre ou autónomo.

Mais tarde, a minha mãe ter-me-à ensinado a comer sozinho, papas, pão, manteiga, a beber leite. Ao longo de muitos anos, através de muitos epísódios, muitas pessoas, sempre com a  minha mãe à frente e o meu pai em segundo lugar, ensinaram-me a cuidar de mim, a ler e a escrever, a ter uma profissão, e até me ensinaram a cuidar dos outros. Foram professores, outros familiares, amigos, pessoas que eu conheci ao longo da vida e que me queriam bem. Até que eu cheguei a esta situação em que estou hoje, sou autónomo, livre como um pássaro, tenho a liberdade em mim, a liberdade de Deus.

Mas o caminho que Deus escolheu para me dar a Liberdade foi o da  Comunidade - a minha família em primeiro lugar, depois a família alargada, os amigos, os professores, os portugueses, outras pessoas do mundo. Eu próprio contribuí neste processo, desejando tornar-me autónomo. Mas não seria hoje o homem livre que sou se não fosse a Comunidade, desde a mais pequena até à maior.  Eu sou livre porque nasci numa comunidade livre, e foi assim  - livre - que essa comunidade me educou. E, à frente dessa comunidade que Deus escolheu para me dar a liberdade, estava a minha mãe, que era uma mulher livre.  Eu não seria nunca um homem livre se a minha mãe fosse uma escrava e se eu tivesse sido educado numa comunidade de escravos.

A Liberdade está na Comunidade e só em segundo lugar em mim, ou em qualquer outro homem. É primariamente um valor comunitário,  não individual. E qualquer que seja o ângulo por que se encare a  Liberdade vamos sempre dar de caras com uma figura de Mulher. A  Liberdade é também,  em primeiro lugar, um valor feminino e por isso é sempre simbolicamente representada por uma figura de Mulher.

Aquela Liberdade de que falavam os pais fundadores americanos era, em parte, propaganda e demagogia, era uma liberdade falsa, não era a verdadeira Liberdade. Como facilmente se comprova. Os católicos estavam proibidos  na maior parte dos Estados americanos na altura em que aquela Declaração foi produzida, e continuariam proibidos por muitos e bons anos. Eles não foram perfeitamente sinceros naquela Declaração, não acreditavam inteiramente naquilo que estavam a dizer. Alguns até tinham escravos, e a discriminação dos negros manteve-se até há poucas décadas. Que Liberdade era essa que eles apregoavam?  Era uma liberdade parcial, uma liberdade para alguns, mas não para todos. Não era a verdadeira Liberdade, porque esta, sendo um dom de Deus, é como o Sol, é para todos - excepto, naturalmente, para os seus próprios inimigos porque esses não a querem para nada. 

2 comentários:

Pedro Sá disse...

1. Claro que consentiria que viesse a público, ia-se agora perder tempo político por causa de uma consideração filosófica que não alteraria nada e não levaria a lado nenhum?

2. Se há país onde o conceito e a prática de comunidade são fortes é precisamente os Estados Unidos, e não conheço nenhum outro país que sequer se aproxime deles nessa matéria.

3. Uma qualquer má língua diria que o PA na cama parece um coelho ahah não resisti :D

4. O raciocínio de resto está muito bem construído (o que não significa que concorde)...e não está longe do raciocínio que levou à construção do Estado Social e à ultrapassagem dos paradigmas liberais há quase 100 anos.

Muito embora a conclusão do penúltimo parágrafo seja precipitada, pelo menos. Com os mesmos dados fornecidos é possível concluir numa direcção totalmente diferente, afirmando p.ex. que "independentemente de tudo isso a Liberdade já fora inscrita por Deus dentro de mim".

5. De facto a História da liberdade religiosa e das relações entre os Estados e as confissões religiosas nos diversos Estados norte-americanos no século XVIII é tudo menos linear, aliás em alguns Estados pretendia-se implantar Repúblicas teocráticas...

Vivendi disse...

Comunidade é a palavra-chave.

Realmente os EUA são o país onde existe a maior prática do sentido de comunidade.

Na Europa encontra-se o sentido comunitário nas aldeias.

A liberdade só faz sentido quando respeitamos e somos respeitados pela comunidade.

A comunidade é o último reduto da proteção do indivíduo.

Quem sente Deus sente também a necessidade de partilhar a sua fé junto à sua comunidade.