08 fevereiro 2012

temos de ser iguais a ele

“O Kant é o maior inimigo moderno da Igreja Católica e da nossa própria cultura”, comecei por declarar ainda o jantar não ia a meio. E com esta declaração de guerra, acrescida da facilidade de o inimigo estar morto, eu fui por ali fora sem parar durante dois ou três minutos. Todos ficaram a olhar para mim, mais ninguém falava.

A tal ponto que já depois do jantar, os ânimos serenados havia um bom bocado, o PC. , marido da J., que na fase mais intensa do debate se levantara da mesa e se fora sentar num sofá de costas voltadas para nós, mais tarde alegando dores de cabeça, voltou-se para mim, e declarou alto e bom som: “Oh Pedro, eu estive ali sentado a ouvir-te ... tu hoje vinhas muito bem preparado...”

Eu estava de tal maneira concentrado nos argumentos contra o Kant, e o silêncio à minha volta era tal, que a única interrupção que senti, veio do outro lado da mesa, e do JG, que esboçou umas palavras a que eu nem dei importância. Eu não precisava da ajuda certa e segura dele para desancar nas ideias do Kant. Até que, passados momentos, o JG elevou ligeiramente a voz, e fez-se ouvir: “Oh Pedro ... o Kant não disse nada disso...”

Foi um choque. Por esta é que eu não esperava. Ele ainda tentou argumentar, mas eu nem lhe dei tempo. Irritado por ver um ex-padre católico, um homem que, não obstante, permanecia imensamente religioso e católico, ainda por cima educado numa Ordem que tinha sido criada precisamente para combater o protestantismo, a pôr a mão por baixo do mais protestante dos filósofos modernos - essa, eu não podia compreender.

Por isso, continuei mais determinado do que nunca, batendo ainda mais forte nas ideias do Kant, enquanto do outro lado o JG elevava a voz para se fazer ouvir: Que não ... que não ... que o Kant não tinha dito nada daquilo que eu lhe atribuía ... Que o Kant era o maior filósofo da modernidade...

Da presidência da mesa, o HV, que tinha servido mais um copo de vinho tinto a todos os presentes - este, segundo ele, uma especialidade do Alentejo - , interrompeu a discussão e disse: ”O Kant disse que a gente não podia chegar à essência das coisas...”

O HV estava certo. Eu tinha agora ali um aliado, embora não o aliado que eu esperava. E peguei-lhe na palavra: “Exactamente. Esse padreca - porque ele era um verdadeiro padreca, um homem que se comporta como um padre sem o ser - amputou a razão humana, depreciou-a, disse que nós não podemos chegar pela razão a Deus, à verdade e à essência das coisas”. E voltando-me para o JG: “E este homem é que é considerado o pai do racionalismo moderno... Então e nós, católicos, que achamos que a razão pode chegar a todo o lado, somos o quê? Eu bem gostaria de saber o que tu pensarias do Kant e das suas ideias, se ele tivesse nascido, não na Alemanha, mas em Amarante...”

Ainda estávamos na sobremesa, todos sentados à mesa, excepto o PC - que permanecia no sofá com dores de cabeça -, e eu, que já falava de pé, acompanhando as palavras com gestos de indignação: “Não percebo, JG, como é que tu podes admirar um filósofo que é claramente o principal inimigo da nossa cultura, da tua, da minha, da de todos os que estão aqui sentados a esta mesa ...”. E terá sido por esta altura, que o JG, um pouco exaltado como eu, disse do outro lado: “Oh Pedro ... nós temos de respeitar o inimigo... temos de ser iguais a ele ... para depois o podermos superar...”.

Eu continuei a disparar sobre o Kant, mas já havia pessoas à volta da mesa a falar de outros assuntos, especialmente as mulheres - e só parei quando a minha mulher, sentada à minha esquerda, e que possui uma capacidade extraordinária para me desconcentrar, me agarrou suavemente na mão, puxou-a com força para baixo, e disse: “Senta-te ... que não vieste aqui para dar uma conferência....”.

Passado um bocado, já tudo tinha acalmado, dei a volta à mesa e fui-me sentar ao lado do JG. O personalismo católico... - disse eu -, temos duas interpretações totalmente diferentes do Kant. Ele disse-me, então: “Sabes, Pedro, o Kant é o filósofo mais importante na minha vida porque foi com ele que eu aprendi o significado da fé...”.

À saída abraçámo-nos, depois de uma bruta discussão, como há quase quarenta anos. Quando cheguei à rua, estava tranquilo. No meu espírito estava aquela frase do JG, dita no meio da confusão, a propósito do inimigo: “... temos de ser iguais a ele...”. Nessa noite, adormeci a pensar na Companhia de Jesus. No nome: Companhia de Jesus ... o ênfase na figura de Cristo ... Solo Christus ...

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