26 fevereiro 2012

o comandante


Agora que, incidentalmente, o Joaquim trouxe o tema da aviação para o blogue, eu gostaria de referir a que se deve, em parte, o meu interesse pelo assunto. As pessoas que seguem dentro do avião formam uma comunidade porque têm pelo menos um interesse em comum - a segurança.

O avião é hoje em dia, e apenas com cerca de 70 anos de história da aviação comercial, o transporte mais seguro do mundo, a grande distância de todos os outros. E isso deve-se aos enormes progressos que têm sido feitos na melhoria das condições de segurança, quase sempre a partir da análise exaustiva dos acidentes aéreos. O grande crédito nesta matéria vai para a FAA americana (Federal Aviation Administration), curiosamente uma instituição do Estado, e não uma instituição privada, mostrando que não existe princípio que possa provar em abstracto que as instituições privadas são mais importantes que as públicas, ou vice-versa.

Muitas decisões têm se ser tomadas dentro de um avião, algumas delas em condições de emergência. Como são tomadas essas decisões, são decisões democráticas? É claro que há muitas decisões, como a hora a que será servido o almoço numa viagem de longo curso, às 12:30 ou às 13:00, que podiam perfeitamente ser tomadas de forma democrática, envolvendo toda a tripulação e todos os passageiros. Mas o que dizer das situações em que estão todos aflitos, como aquela que ilustrei no post anterior, quando o avião, a um segundo de tocar no chão é abanado por uma violenta rajada de vento: aterra-se ou borrega-se?

A experiência, e não o argumento intelectual abstracto, acabou por consagrar a solução que melhor serve o bem comum, que é aqui principalmente o bem da segurança. A comunidade que segue dentro de um avião não se organiza democraticamente, mas organiza-se de forma autoritária, sendo conferida a um homem a autoridade suprema e absoluta sobre toda a gente que segue no avião e sobre tudo o que está dentro do avião. Esse homem é o comandante.

Um dos últimos grandes acidentes, que causou um enorme mistério a mim próprio e a todos os que se interessam pela aviação, ocorreu há cerca de dois anos. Um avião da Air France que fazia a ligação entre o Rio de Janeiro e Paris despenhou-se a meio do oceano, sem razão aparente. Não havia vestígios de bomba, o avião encontrava-se em fase de cruzeiro, que é a fase menos propensa a acidentes.

A marinha francesa fez um trabalho extraordinário e acabou por recuperar as duas caixas negras do avião ao fim de dois anos de buscas no Atlântico, a caixa contendo a última meia hora de conversas no cockpit e a caixa contendo o registo das manobras efectuadas. O mistério ficou desvendado (ver aqui). O custo para o Estado francês de desvendar este mistério, em nome da segurança presente e futura para todos os passageiros de aviões em França e em todo o mundo, deve ter sido extraordinário, um custo que dificilmente uma empresa privada estaria disposta a incorrer, sobretudo quando os benefícios são tão difusos e futuros.
O comandante não estava no seu posto de comando, tendo-se ausentado para o seu descanso regular, e os dois co-pilotos que ficaram no cockpit não conseguiram nunca entender-se sobre o que estava a acontecer e como sair daquela situação. Infelizmente, o comandante quando regressou ao cockpit, em lugar de assumir imediatamente os comandos como lhe competia, ficou a observar. No final, uma coisa é certa: se o comandante não tivesse saído do cockpit aquele acidente nunca teria acontecido. (Na posse dos dados do vôo, fornecidos por uma das caixas negras, a Air France replicou em simulador as condições do acidente com vários comandantes diferentes, e todos sairam facilmente da situação).
A democracia não é um método de decisão cuja bondade possa ser demonstrada por argumento intelectual abstracto, e que seja independente das circunstâncias. Em circunstâncias difíceis, como uma emergência num avião, ou aquelas por que passa actualmente Portugal, parece haver outro melhor.

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