27 fevereiro 2012

75 vezes

Imagine a sua mão a representar o avião da Air France referido no post anterior, o punho para baixo e os dedos levantados para cima. Desloque agora a sua mão para a frente e para baixo. Foi assim que o avião caiu, sendo a cauda a primeira parte a embater no mar.

Nenhum dos pilotos teve a sensação física de que o avião estava a cair, e o mesmo terá acontecido com os passageiros. Existe um momento em que o comandante se apercebe de que possivelmente o avião estaria a cair, mas isso resulta da leitura dos instrumentos, certamente do altímetro, cujo ponteiro nessa altura estaria a rodar para a esquerda a toda a velocidade.

Tudo começou quando o co-piloto decidiu puxar o nariz do avião para cima a fim de subir e fugir à tempestade. Nessa altura o indicador principal de velocidade avariou-se e, embora todos os sistemas de um avião moderno possuam um back-up, isto é, um sistema alternativo que lhe dá as indicações de outro que se avariou, o co-piloto terá mantido a mesma potência dos motores, não ligando à velocidade.

Imagine-se a conduzir o seu carro numa estrada plana e tendo pela frente uma ladeira. Se não der mais acelerador ao carro, ele vai perdendo velocidade e, no limite, pára. Foi isso que aconteceu ao avião, começou a subir e a perder velocidade. A certa altura, a velocidade caiu abaixo da velocidade mínima necessária para manter o avião no ar, e o avião começou a perder altitude - uma situação de emergência conhecida pelo nome de stalling.

Um avião moderno possui alarmes os mais variados, normalmentye sob a forma de campainhas ou buzinas, mas a situação de stalling é tão grave que, neste caso, o alarme é uma voz mecânica que se faz ouvir repetidamente no cockpit: “Stalling ... Stalling ... Stallling...”. Esta voz mecânica fez-se ouvir 75 vezes no cockpit sem que os co-pilotos, já completamente desorientados, lhe tivessem dado atenção.

É possível recuperar de uma posição de stalling se a altitude fôr suficientemente elevada, e esse era o caso quando o alarme se fez ouvir pelas primeiras vezes. Partindo da situação em que o avião se encontrava, nariz para cima e a perder velocidade e altitude, a manobra consiste, em primeiro lugar, em virar o nariz do avião para baixo e, em seguida, aplicar a potência máxima aos motores. O avião fica, assim, durante um tempo a voar em direcção ao solo e a aumentar de velocidade de tal modo que, quando a velocidade de sustentação é atingida, é possivel endireitar o nariz, passando o avião a voar paralelamente ao solo e, continuando a aumentar a velocidade, finalmente fazê-lo ganhar altitude de novo. Num avião militar esta manobra é relativamente fácil, num avião comercial é mais lenta e complicada porque a sua capacidade de manobra é menor, uma diferença semelhante à que existe entre um automóvel e um autocarro.

Só muito tardiamente, porém, o comandante, que tinha regressado ao cockpit e que se sentou atrás do co-piloto que tinha ocupado o seu assento, se apercebe que este, paralisado pela confusão e provavelmente pelo pânico, continua agarrado ao comando do avião a puxar-lhe o nariz para cima, exactamente o contrário daquilo que deveria ser feito. Ainda lhe dá a ordem para cessar de o fazer. Mas já não houve tempo para fazer mais nada.

Uma série de factores concorreram para a tragédia, nenhum deles de per se sendo susceptível de a causar: a tempestade tropical (habitual naquela zona), a decisão de não a contornar (outros vôos que passaram naquela zona naquela altura decidiram contorná-la); o abandono do cockpit por parte do comandante para o seu descanso regular (se ele tivesse decidido descansar cinco minutos mais tarde, estaria aos comandos na altura em que tudo começou); a avaria do velocímetro; a inexperiência e a falta de treino do co-piloto; a independência dos comandos do moderno Airbus (uma manobra feita por um dos pilotos não é reflectida nos comandos do outro); a demora do comandante em regressar ao cockpit; e, finalmente, a confusão generalizada. Ninguém estava aos comandos do avião.

Os momentos finais do Air France 447 sugerem-me a economia portuguesa. Os alarmes a soar repetidamente e no cockpit reina a confusão. Ninguém sabe o que fazer, ninguém está aos comandos mais do que estava o comandante Marc Dubois naqueles minutos finais, e ninguém faz nada. Olhando em frente pelo cockpit, na escuridão da noite, vêem-se distintivamente as luzes do avião grego mais à frente e mais abaixo. Um dos pilotos portugueses ainda observa: “O grego vai-se espetar no oceano...”, mas um outro diz: ”Mas nós, não. Nós somos diferentes”, enquanto o avião continua a perder altitude, sem que ninguém faça nada, e a seguir rigorosamente a mesma trajectória do grego.

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