05 fevereiro 2012

o amigo

No debate anterior, quem é que tem razão, o Carlos Marx que, citando uma variedade de autores, incluindo Adam Smith e David Ricardo, Kant e Hegel, expôs com todo o detalhe perante os amigos, a teoria do valor trabalho, a importância das condições materiais de produção, a divisão da sociedade em duas classes - proletários e capitalistas-, a apropriação pelos capitalistas de uma parte do valor produzido pelos proletários - o conceito de mais-valia -, a inerente injustiça de uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção, e a necessidade de uma revolução que elimine os capitalistas e entregue o poder do Estado nas mãos dos operários - um Estado a que ele chamou Estado Proletário - a fim de que a justiça possa finalmente prevalecer na sociedade?

Ou o amigo, que de uma maneira aparentemente bronca, embora solene, não quis saber de nenhum destes autores, conceitos ou ideias, mas que parece ter percebido ao menos uma coisa, o encadeamento e o fim a que elas conduziam - que era o de pôr as pessoas à luta umas contra as outras - e, por isso, recusando-se sequer a discutir qualquer pormenor ou ideia que acabava de ouvir da boca do Carlos Marx, resume tudo numa frase desprezante: "Deixa-te mas é lá dessas merdas, pá"?

Quem tem razão, quem tem a verdade do debate, o Carlos ou o amigo?

É o amigo.

A principal diferença entre o Carlos e o amigo é que, na apresentação do seu caso, o Carlos utiliza apenas o intelecto ou a razão, ao passo que o amigo é todo emoção ou coração, quer quando põe o braço por cima do ombro do Carlos, quer quando - antes de desferir o seu julgamento - lhe promete oferecer um conselho de amigo, quer ainda quando - depois de desferir o golpe fatal - convida o Carlos e todos os outros para irem juntos tomar um copo.

A questão pode, pois, refazer-se de outro modo, quem tem a Verdade neste debate, a razão (Carlos) ou o coração (amigo)?

É o coração.

O amigo compreendeu que aquelas ideias do Carlos, como a teoria do valor trabalho e as outras, mesmo que estivessem assentes em bases sólidas - isso ele não sabia discutir nem lhe interessava - conduziam à divisão da comunidade, e - acrescento agora eu -, numa comunidade dividida nunca se chega à Verdade e, menos ainda à Justiça como pretendia o Carlos; que as únicas "verdades" de uma sociedade dividida são verdades sectárias, parciais, próprias de quem vê só com um olho, na melhor das hipóteses meias-verdades, quando não rotundas mentiras.

Enquanto o Carlos falava, e elaborava sobre os conceitos de valor e de mais-valia e explicava o que seria o Estado Proletário, e como ele representava a justiça, ao amigo, calado, mas de sobrolho franzido, uma única ideia lhe atravessava o espírito, um espírito aparentemente bronco, mas ainda assim um espírito: "Eh pá... este gajo ... com estas ideias ainda põe a malta toda à porrada...". E foi aí que o coração lhe doeu.

Eles próprios não iriam escapar à divisão, nunca mais iriam poder estar juntos, a beber um café naquela pastelaria de Viseu, a ouvir as ideias extravagantes de todos os Carlos deste mundo, a irem todos beber um copo juntos, porque alguns deles só tinham operários na família, enquanto outros eram filhos de patrões. Tudo menos isso, tudo menos partir a comunidade, que era aquilo a que as ideias do Carlos conduziam.

E o amigo tinha razão - a Verdade -, embora a razão lhe viesse muito mais do coração do que do intelecto. O Carlos dizia que as suas ideias conduziam à Justiça na sociedade. Como assim? A Justiça depende da Verdade e a Verdade está na Comunidade. Ora aquilo que o Carlos se propunha fazer era, primeiro, partir a Comunidade, e depois procurar nela a Justiça. Impossível, porque numa Comunidade dividida não há Verdade, menos ainda Justiça.

A Verdade está na Comunidade. Estará?

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