Eu gostaria neste post de voltar ao tema da liberdade e ao liberalismo moderno cuja paternidade é reclamada pelos autores anglo-saxónicos que, como se sabe, reclamam sempre a paternidade de tudo o que é moderno. Concentrar-me-ei na parte económica do liberalismo moderno, cuja paternidade é atribuída aos filósofos moralistas escoceses do sec. XVIII, como David Hume, Adam Smith e Adam Ferguson.
Não sem antes dizer duas palavras acerca do meio cultural em que este liberalismo nasceu. A Escócia era na altura um dos países mais anti-católicos do Ocidente, e a versão do protestantismo aí prevalecente era o presbiterianismo, uma das correntes do calvinismo. Para não variar, o calvinismo foi um produto do catolicismo - Calvino era um católico francês que foi viver para Genève e daí desencadeou a sua revolta contra a Igreja Católica.
Todos os homens são pecadores e têm uma tendência irreprimível para o pecado. E não há nada que os salve da sua condição de pecadores - nem mesmo as boas obras, de caridade ou outras, praticadas ao longo da sua vida. Excepto a graça de Deus (Solo Gratia). E a graça de Deus obtém-se pela fé, e só pela fé (Solo Fidei). Só a fé na figura redentora de Cristo pode salvar o homem.
Para meio cultural de onde vai nascer o liberalismo moderno - uma doutrina que, entre outras coisas, coloca a liberdade de escolha como um dos seus valores supremos - parece uma ironia. Nenhum homem tem liberdade para escolher a via para a salvação. É a fé e só a fé, nenhuma outra via está aberta.
O presbiterianismo é uma doutrina protestante que exemplifica bem o ponto que procurei estabelecer no post anterior - não há nela nem demónios nem santos, e este último ponto, especialmente, carece de explicação porque as igrejas presbiterianas têm frequentemente nomes de santos. Não há demónios porque todos os homens nasceram pecadores (pecado original) e permanecerão assim para o resto das suas vidas. O presbiterianismo não faz diferença entre pecadores e não pecadores. São todos pecadores. E também não estabelece a diferença entre as várias gradações do pecado (v.g., pecado venial, pecado mortal, etc.). Pecado é pecado, ponto final. A salvação obtém-se pela graça de Deus através da fé, e todos os que têm fé em Deus serão salvos e serão santos. Para os presbiterianos, santo é apenas o homem que tem fé em Deus.
A minha questão neste post é a seguinte: o catolicismo é uma doutrina universal, como o seu nome reclama e eu julgo ser verdade, e portanto, engloba o liberalismo. Na matemática dos conjuntos, o liberalismo é um subconjunto (A) do conjunto universal (U) que é o catolicismo. Mas se é assim, então que liberdades oferece o catolicismo que o liberalismo não tem?
No decurso do meu caminho para responder a esta questão, eu acabei por me confrontar com o pecado. A palavra tem origem no latim peccatum e significa falha, falta ou até crime, mas parece ter um significado ainda mais antigo que é o de tropeçar. Fiquei mais feliz com este último significado porque tropeçar não depende inteiramente da nossa vontade. Mas verdadeiramente feliz e desconcertado fiquei foi quando fui ao Catecismo ver a definição que ele dá de pecado: "...pecado é um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas criadas para que possam amá-Lo e amarem-se mutuamente" (Cat: 387). O pecado está relacionado com a liberdade, é um abuso da liberdade, que, por seu turno, é uma dádiva de Deus.
O liberalismo moderno - e o socialismo também - é como uma faixa estreita de uma larguíssima avenida, que se chama catolicismo. A primeira liberdade que ele não me permite é mudar de faixa, por exemplo, ser socialista. Se eu fizer parte de uma comunidade liberal respeitável, como, por exemplo, a Mont Pelerin Society ou o Blogue Blasfémias, e me declarar socialista, vou ser expulso. E o catolicismo, como reage? Encolhe os ombros, e se a coisa chegar ao conhecimento do Bispo, ele talvez diga: "Olha... o Arroja ... tão bom homem ... agora deu-lhe na cabeça para ser socialista, quando antes lhe tinha dado para ser liberal...".
O liberalismo também não me permite dizer a verdade de forma incondicional e em todas as circunstâncias e lugares. Suponha que perante a mesma audiência de uma respeitável comunidade liberal, como qualquer daquelas que mencionei acima, eu digo a seguinte verdade: "Vocês andam para aí a dizer que o Estado é sempre mau, uma fonte permanente de ineficiência económica e de empobrecimento, quando a verdade é que, segundo as estatísticas que estão disponíveis para todos verem, os países mais ricos do mundo e os mais desenvolvidos são precisamente aqueles que têm o maior Estado - os países escandinavos". Vou ser posto fora. E o catolicismo como reage a isto? Talvez o Bispo agora diga: "O Arroja está a chegar-lhes, está a dizer-lhes as verdades que eles não querem ouvir. O Arroja está a comportar-se como um verdadeiro católico, a estilhaçar as "verdades" daquela seita que, em alguns casos, são apenas meias-verdades, quando não rotundas mentiras. Nunca mais o convidam para uma conferência, vão querer é vê-lo pelas costas".
Eu poderia prosseguir figurando situações semelhantes ad infinitum. Mas aquilo que me interessa agora considerar são situações de fronteira, precisamente aquelas que se encontram próximas dos pontos críticos que separam a grande massa da distribuição normal das suas abas. As situações extremas. Exemplifico com uma situação de fronteira na aba esquerda da distribuição, e outra na aba direita.
O liberalismo moderno concede-me a liberdade de roubar? Não, em nenhuma circunstância. O princípio da propriedade privada é um princípio sagrado para o liberalismo económico, e compreende-se que assim seja, porque sem o respeito absoluto pela propriedade privada não há trocas, nem preços, nem liberalismo nenhum. E o catolicismo concede-me a liberdade de roubar? Sim, nas circunstâncias que estão descritas no artigo 2408, a que já fiz referência. Liberal por liberal, prefiro o catolicismo, sempre me dá mais esta liberdade que o liberalismo não dá.
O liberalismo moderno reconhece-me a liberdade para ser um santo, um herói e o autor de milagres, essa expressão da liberdade suprema que é a liberdade de Deus? Não, nunca me reconhecerá essa liberdade, sobretudo essa. Todas menos essa. Imagine-me a fazer o milagre da multiplicação dos pães. Arruinava os padeiros todos lá da zona e deitava por terra a ideia "sagrada" de mercado. Expulsavam-me, perseguiam-me e, se calhar, até me matavam. Foi isso que fizeram na Escócia aos padres católicos porque eles também davam as coisas de borla, pães e muitas outras.
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