Reproduzo parcialmente a seguir um artigo que publiquei no Jornal de Notícias em Julho de 1993 sob o título "Coisas Grandes":
"Cem milhões aqui, trezentos milhões acolá ...." e só muito lentamente nós nos damos conta de que eles estão a falar de dinheiro real.
Numa sociedade onde prevalece a cultura do socialismo democrático ou social-democracia, o poder político controla uma parte substancial da economia e, indirectamente, a vida de muitos milhões de cidadãos. Os empregos, as carreiras, a melhoria do nível de vida dos cidadãos ficam assim dependentes do poder político - uma dependência que o poder político assume, em geral, com prazer e que, na realidade, deseja.
Os políticos obtêm poder através dos votos dos cidadãos. Para se fazerem eleger eles têm de actuar - ou de dar a sensação de que estão a actuar - em benefício de milhões de cidadãos. Naturalmente que os projectos através dos quais eles conseguem essa finalidade não podem ser projectos quaisquer. Têm de ser megaprojectos.
Nesta sociedade, o emprego é geralmente visto como uma responsabilidade colectiva do Estado, não uma responsabilidade individual dos cidadãos. Nela, nenhum governo poderá esperar a reeleição se, para aumentar o emprego entre a população, o ministro da indústria vier regularmente a público declarar que o seu ministério financiou em 20 mil contos a empresa Santos & Costa, Lda., que emprega 5 pessoas, ou em 14 mil contos a empresa Zélio & Silva, Lda., que emprega 3. A generalidade dos cidadãos olha essa acções governamentais como largamente irrelevantes para o seu próprio bem-estar, na medida em que cada um deles se vê a si próprio como possuindo uma probabilidade ínfima de vir a ser beneficiado pelos 5 postos de trabalho criados na Santos & Costa, Lda., ou pelos 3 empregos gerados na Zélio & Silva, Lda.
Para que a acção governamental tenha impacto público na criação de empregos, ela deve envolver um financiamento de muitos milhões de contos e prometer criar milhares de postos de trabalho. Tem de ser um megaprojecto prossuindo a dimensão do projecto Ford-Wolkswagen em Palmela, do projecto do gás natural, do combóio TGV, de uma segunda ponte sobre o Tejo, de uma nova sede da Caixa Geral de Depósitos, de um Centro Cultural de Belém, de uma Expo-98.
Este apetite natural dos políticos de tendência socialista pelas coisas grandes ficou para sempre gravado com algum humor num episódio ocorrido na Inglaterra no início dos anos 50. Winston Churchill era primeiro-ministro.
Na altura, o socialismo emergia triunfante no seio do Partido Trabalhista. Um dos principais objectivos programáticos dos trabalhistas era a nacionalização dos grandes bancos, das grandes seguradoras, das grandes petrolíferas, das grandes siderurgias, etc. - objectivo que eles viriam a realizar durante os anos 60 e 70.
Naquele dia, Churchill conversava amenamente com um deputado trabalhista nos Passos Perdidos do Parlamento. Enquanto falavam encaminharam-se lentamente para o quarto de banho do parlamento. O deputado trabalhista entrou primeiro e colocou-se no mictório situado logo à entrada. Churchill entrou a seguir, percorreu todo o espaço e foi postar-se no mictório situado no extremo oposto.
Depois, o silêncio. Estavam agora os dois concentrados, naquela posição canónica que os homens costumam adoptar nesta situação.
O deputado trabalhista resolveu quebrar o silêncio. A meio do acto, atirou: "Eh, Winston, você hoje está afastadote...".
A resposta demorou um momento a chegar. Charuto ao canto da boca e a voz arrastada do velho leão: "É ... estou... é que vocês quando vêem qualquer coisa grande querem logo nacionalizá-la...".
Eu não teria nada contra esta tendência natural do socialismo democrático ou social-democracia pelas coisas grandes se ela não politizasse a sociedade a tal ponto que o macropensamento e os macroprojectos dos políticios não obliterassem por completo o micropensamento e os microprojectos que são próprios das pessoas normais.
Numa sociedade onde prevalece a cultura do socialismo democrático ou social-democracia, o macropensamento e os macroprojectos acabam por dominar o espírito público e serem o foco das atenções da imprensa, e os cidadãos acabam por se convencer que só aquilo que é grande é que vale a pena. Mais sério ainda, as pessoas habituam-se a pensar que as grandes coisas podem ser criadas por acto volitivo de um dia para o outro, como por um acto de mágica. A ideia de que as grandes obras são geralmente o resultado de um longo processo de experimentação sucessiva, de avanços e recuos, fica completamente obscurecida.
O efeito desta cultura sobre o espírito dos jovens, em particular, é devastador. Logo que acabam os estudos, a grande ambição de muitos deles é arranjarem um emprego num gramde projecto governamental, daqueles que aparecem na televisão, que são mencionados nos jornais e que são inaugurados e visitados frequentemente por secretários de Estado, ministros e primeiros-ministros. Crentes de que só é bom aquilo que é grande, e que tudo na vida se pode criar de um dia para o outro, eles seguem pela vida fora incapazes de criar o que quer que seja.
Mas os grandes projectos governamentais são um engano. Tratando-se de projectos de natureza pública, eles só são acarinhados pelos políticos enquanto dura a novidade e são alvo das atenções da imprensa. Logo que este período termina, eles são votados ao abandono e ao subfinanciamento, dando lugar, gradualmente, aos célebres elefantes brancos. Os políticos que os apadrinharam, entretanto, já passaram para outro megaprojecto.Se se trata de projectos de natureza empresarial, eles acabam por falir ou, na melhor das hipóteses, por ficar a grande distância dos objectivos visados.
A região de Setúbal foi até recentemente apontada como o exemplo acabado da arte dos governantes e do dinheiro dos contribuintes para subtrair uma região inteira à crise económica e ao desemprego. A região de Setúbal está agora a tornar-se o exemplo acabado do falhanço do engenho governamental nesta mesma matéria.
Todos os meses alguma empresa subsidiada pelo Estado fecha as portas ou despede pessoal no distrito. Esta semana foi a fábrica Renault. Projectada com o apoio dos governantes e o dinheiro dos contribuintes para dar emprego a 7 mil pessoas, a fábrica emprega actualmente 1500 pessoas e acaba de anunciar o despedimento de mais 320.
(....)
(in P. Arroja, Abcissas, op.cit., pp. 293-95)
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