25 agosto 2011

Entre o povo não é

A democracia nunca sobreviveu de forma duradoura como sistema de governação nos países de tradição católica. Portugal está em vias de confirmar esta asserção mais uma vez. A prazo, um país católico governado pelo sistema de sufrágio universal arruina-se (na melhor das hipóteses, porque, na pior, entra em guerra civil, como já aconteceu em Portugal na década de 1820 e mais recentemente em Espanha, na década de 1930).

Para compreender um país católico, muito mais do que um país protestante, é essencial a distinção entre a elite - representada, em última instância pela figura de Cristo - e o povo, que possui comportamentos e valores que, em vários graus, são anti-cristãos.

A questão que pretendo responder aqui é a seguinte: sendo que, a prazo, a democracia de sufrágio universal nunca sobrevive num país de tradição católica, quem é que destrói a democracia - é o povo ou a elite, ou ambos?

É o povo.

O povo não é democrático. A elite é democrática.

Na base da demonstração está aquela característica da cultura católica que mais a distingue da cultura protestante - o personalismo católico. Antes de prosseguir, eu gostaria de afirmar que o personalismo católico que leva cada pessoa a afirmar-se como sendo diferente de todas as outras (e, portanto, uma excepção, daí a designação alternativa de excepcionalismo católico) é, em primeiro lugar, uma característica feminina, muito mais que masculina, fazendo justiça à natureza essencialmente feminina da cultura católica. Experimente-se dizer a uma jovem mulher que ela é parecida com a mãe, e observe-se, de seguida, a sua reacção. Uma mulher não admite sequer ser igual à mãe, quanto mais à vizinha do lado. Ela é única, uma excepção. Pelo contrário, um homem é largamente indiferente à observação de que é parecido com o pai.

O personalismo católico deriva de Deus ter uma relação pessoal com cada um, de existir Deus ou a Verdade em cada um, mas essa Verdade não se revela na sua plenitude assim de uma vez por todas. Vai-se descobrindo ao longo da vida. Cada um possui a Verdade (ou é possuído por Ela), mas de uma forma necessariamente limitada e parcial (caso contrário, cada um seria Deus), e a Verdade revela-se a cada um de maneira diferente. Sendo assim, não é possível a estas pessoas porem-se de acordo sobre o que quer que seja, cada um tendo uma verdade que é diferente da de todos os outros. Os consensos, por mínimos que sejam, são impossíveis, e assim também a democracia. Todos discordam de tudo. Num país de tradição católica, discordar do que quer que seja é um desporto ainda mais popular que o futebol (e uma característica distintiva do homem do povo, e mais ainda, da mulher do povo).

À medida que um homem vai passando pela vida, e se eleva para Deus - um traço característico do homem de elite -, a visão que ele tem da Verdade vai-se tornando mais nítida e completa, e o mesmo acontece com todos os outros homens que evoluem neste processo. A visão que cada um tem da Verdade passa a ter muito mais em comum com a dos outros do que de diferente. Estes homens tornam-se pares, aquilo que eles têm em comum é muito mais do que aquilo que os separa. O bem comum e o bem pessoal confundem-se. Estes homens são democratas por excelência, a sua capacidade para respeitar o próximo, que é igual a eles, é extraordinária, e a visão do bem comum é praticamente igual entre eles. A democracia é possível entre estes homens. (E de facto assim acontece na Igreja Católica, em que a elite dos cardeais pratica a democracia na eleição do Papa. Pelo contrário, generalizar a democracia a todos os padres e, mais ainda aos fieis, destruiria a figura do Papa e a Igreja).

Eu gostaria neste ponto de utilizar uma analogia para descrever o processo que expus no parágrafo anterior. Suponhamos três pessoas, colocadas em lugares distintos do mundo, a discutir o que é a Lua (a analogia para Deus ou a Verdade). Um deles, do ponto em que se encontra, à noite, diz que a Lua tem a forma de um C (quarto minguante); outro, colocado noutro país, também à noite, diz que a Lua tem a forma de um D (quarto crescente); e ainda outro, num terceiro país, a uma hora do dia, diz pura e simplesmente que a Lua não existe (este é o ateu da analogia). Eis o povo de tradição católica. Nunca irão chegar a um consenso acerca do é a Lua.

Admitamos, porém, que estas três pessoas começam a elevar-se em direcção à Lua até se encontrarem nela. À medida que progridem para a Lua aproximam-se também entre si e a visão que cada uma delas tem da Lua, que à partida era muito diferente, torna-se cada vez mais igual. A tal ponto que, quando se encontrarem na Lua, todos terão a mesma visão dela. Agora é possível formarem um consenso acerca do que é a Lua. A Lua pode ir a votos, porque vai resultar daí uma definição precisa e consensual - a Verdade - acerca do que é a Lua. Antes, ça serait la bagarre, e nenhuma Verdade acerca do que é a Lua resultaria da discussão e da votação.

A cultura católica, para ser verdadeiramente universal, contém tudo, e cada coisa de um extremo ao outro, mais todos os seus graus intermédios. E o personalismo católico que, no povo, leva cada homem (e mais ainda cada mulher), quase obsessivamente, a pretender diferenciar-se dos outros, conduz, na elite, a que cada homem se sinta quase perfeitamente igual aos outros. Pergunte-se a um cardeal se considera ter mais de comum ou de diferente em relação aos seus pares, e observe-se a resposta. Entre homens assim é possível a democracia. Entre o povo não é.


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