Como é que um homem, especialmente um universitário, passa desse estado de felicidade intelectual, de quase êxtase espiritual, que as universidades anglo-saxónicas proporcionam, exactamente para o estado oposto, o estado de desânimo e de abulia intelectual, que é característico das universidades portuguesas? Como é que um homem se deixa abater assim, como é que ele é corrompido, na realidade destruído, naquilo que existe de mais íntimo na sua pessoa, que é a sua espiritualidade?
É através de um processo longo envolvendo mais de um milhão de golpes diferentes, que se vão sucedendo sem parar no tempo, cada um sem importância decisiva, mas que no conjunto representam uma agressão avassaladora e fatal. Estes episódios ocorrem em todos os lugares, quase todos os dias, e nas mais variadas circunstâncias, em primeiro lugar e em maior número na universidade, com estudantes e principalmente com colegas de profissão. Mas ocorrem também com familiares, com amigos, e nos meios de comunicação social.
É como matar um elefante com alfinetes. O primeiro alfinete não faz mossa ao elefante, nem o segundo nem o terceiro, na realidade, nenhum deles faz mossa, apenas lhe causa um ligeiro incómodo. Mas quando, passados uns anos, o elefante tiver o corpo crivado de alfinetes, ele cai exangue no chão. Esta é a forma de agressão típica da cultura portuguesa e, naturalmente, é uma forma de agressão feminina. Um homem destrói outro através de um golpe, ou de uma série rápida de golpes, violentos, incisivos e fatais. Uma mulher faz diferente. Começa por lhe vibrar um pequeno golpe sem importância, que ele nem dá por isso, e que só lhe deixa uma pequena ferida. Mas depois continua assim de forma persistente, e sem nunca parar, até ao fim dos tempos. Chegará o dia em que a vítima tem o corpo coberto de feridas. Nesse dia cai para o lado.
Vou contar um desses episódios. Foi em 1993. Eu tinha então uma crónica diária na TSF, a qual gravava normalmente nos estúdios do Porto, onde resido. À Quarta-feira, porém, eu trabalhava em Lisboa, no Instituto Superior de Estatística e Gestão de Informação (ISEGI), da Universidade Nova de Lisboa, de que sou um dos fundadores. De manhã dava aulas, e à tarde participava na reunião semanal da Comissão Instaladora do Instituto. Por isso, às Quartas-feiras, eu gravava a crónica nos estúdios da TSF em Lisboa, normalmente durante a hora do almoço.
Cruzava-me frequentemente com o Miguel Sousa Tavares, que, por essa altura, também lá fazia uma crónica de natureza política. O MST era então também director de uma revista chamada Grande Reportagem. Um dia, entre cumprimentos apressados e troca breve de impressões, ele disse-me que queria uma entrevista minha para a Grande Reportagem. Eu respondi que sim, quando ele quisesse. Ele disse-me, então, que me iria mandar uma jornalista.
Passadas umas semanas, recebi em minha casa no Porto, uma jornalista da Grande Reportagem. A entrevista durou mais de quatro horas, e eu próprio, no fim, a fui levar à estação de Campanhã para o regresso a Lisboa, que se fazia tarde para o combóio.
Notei desde o início que havia alguma tensão nela, que ela não morria propriamente de apreço por mim. Mas não liguei. Eu não estava ali para saber o que ela pensava de mim; ela é que estava ali para saber o que eu pensava sobre vários assuntos.
Interrompia-me frequentemente, e a entrevista acabou por ter imensas divagações. Às tantas falou-se de Economia e de economistas. Dias antes, tinha sido anunciada a atribuição do Prémio Nobel da Economia de 1993 aos economistas norte-americanos Robert Fogel e Douglass North. Eu aproveitei - numa altura em que ainda não havia acesso à internet -, para explicar à jornalista em que é que consistiam as teses que tinham levado à atribuição do Prémio Nobel a este dois economistas, e fi-lo com grande detalhe. Devo ter estado a dissertar quinze ou vinte minutos sobre o assunto. Essencialmente, no caso de Fogel, ele tinha sido galardoado porque os seus trabalhos demonstravam conclusivamente que, à época da escravatura nos EUA, o trabalho escravo era mais produtivo do que o trabalho livre.
Bom, quando, semanas depois, a entrevista saíu a público, não é que a jornalista me apresentava aos leitores como eu sendo um defensor da escravatura (entre outras fantasias)?
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