26 dezembro 2010

E Agora?

Aqui recolhido na Pérola do Atlântico, que desde há uns anos a esta parte passou a ser a minha segunda base, tenho passado os últimos dias a ler. É curioso que, passando hoje uma boa parte do meu tempo a ler - seja nas férias ou no trabalho -, eu tenha sido um leitor tardio. Na realidade, só me encantei com os livros, no sentido de me realizar pessoalmente na leitura, já bem depois da maioridade. Enquanto miúdo e adolescente, nunca gostei das estórias da Ana Maria Magalhães e da Isabel Alçada, nem de romances, nem de livros ficcionais e muito menos de poesia. Porém, com os anos, tornei-me um ávido (embora lento) leitor de tudo o que tivesse a ver com a minha profissão e com História contemporânea (biografias, em particular). O gosto pela escrita, sem a qual hoje também já não passo, terá, também, incentivado à leitura. É, pois, com pena que vejo o progressivo abandono da leitura, em prol dos gadgets, por parte dos mais novos. E é com especial prazer que leio mais um livro sempre que algum me preenche intelectualmente.
Tudo isto vem a propósito do primeiro dos três livros que me propus ler durante este período estival: "E Agora? Por uma Nova Républica", de Manuel Maria Carrilho. Trata-se de uma colecção de crónicas, publicadas no Diário de Notícias, e que reflectem a perspectiva do autor quanto à desqualificação que a Democracia Representativa, em geral, e a Política, em particular, têm registado no passado recente. O livro chamou-me a atenção pelo título ("Por uma Nova República") e da sua leitura resultou uma agradável surpresa. É que Manuel Maria Carrilho, não obstante aqueles que eu entendo serem uns tantos equívocos conceptuais e uma certa predisposição para umas quantas picardias pessoais (com Miguel Sousa Tavares, por exemplo), é um excelente pensador.
Começando pelos equívocos, Carrilho é da opinião que a política está hoje subjugada à finança, em resultado de não existir uma alternativa consistente ao capitalismo, na sequência da desideologização da sociedade do pós Muro de Berlim. Ora, concordando eu com o autor que o conceito de auto regulação soçobrou, não posso aceitar a sugestão de que a raiz dos problemas não esteja na política, mas antes na especulação financeira. Não. Os problemas que hoje são expostos - e explorados - pelos especuladores e investidores financeiros são o reflexo das falhas da Democracia representativa, nomeadamente da insustentabilidade do Estado providência que daquela resultou na Europa (e, em certa medida, na América) e, ainda, da falta de accountability que esta mesma Democracia evidencia actualmente (e que o autor refere no seu livro!). Do mesmo modo, da desregulamentação desenfreada das últimas duas décadas, julgo que, não se exige um esforço de nova regulamentação. Exige-se, sim, mais e melhor regulação, a fim de fazer com que a ganância e a ausência de ética não produzam atropelos aos direitos dos cidadãos. De resto, se há coisa que quer a presente crise quer a queda do muro de Berlim evidenciaram é que a política nunca obterá o primado sobre a economia, como Carrilho sugere que aconteça. Pelo contrário, é a economia, como ciência eminentemente social que é, que marca as tendências políticas.
Quanto aos aspectos comuns, primeiro, a Educação, em relação à qual o autor alerta para o efeito destrutivo que a massificação do ensino provocou na autoridade do Professor pois "a possibilidade de ensinar depende estreitamente do estatuto, e da autoridade, que a sociedade reconhece não só aos saberes mas também aos professores, indispensáveis intermediários da mediação educativa, que nenhuma tecnologia consegue substituir" interrogando-se, aliás, "se a introdução da democracia na escola não terá, na realidade, por efeito paradoxal, contribuído para a inviabilização da própria escola." (páginas 70 e 71). Adicionalmente, Carrilho sublinha ainda que a erosão do conceito de Família colocou a escola, e os professores em particular, numa melindrosa encruzilhada que "atingiram a educação, cada vez mais desorientada pela multiplicação - quantas vezes contraditória - de objectivos que se lhe exigem (...) que levou à desvalorização dos conteúdos, dos saberes a transmitir" (página 69). Carrilho chega ao ponto de apelidar os professores de "heróis do nosso tempo", epíteto que, na minha opinião, é manifestamente generoso, mas que não deixa de ter um fundo de verdade.
Segundo, a Legitimidade Democrática. Neste domínio, Carrilho aponta uma questão muito importante: o distanciamento que, hoje, caracteriza os eleitores dos partidos políticos e a descredibilização que resulta do facto de estes estarem cada vez mais fechados sobre si próprios. Sendo certo que essa descrença nada tem de original - o autor remete-nos para os gregos e romanos, alturas em que esse tipo de crítica era também uma constante -, Carrilho sublinha, no entanto, que a sociedade contemporânea e, suponho eu, a tecnologia e a globalização que a caracterizam, faz com que hoje seja posta em causa a dupla ficção na qual se sustenta a democracia tradicional: "primeiro, a de que a parte [maioria] vale pelo todo. E, depois, a de que o momento eleitoral vale para toda a duração do mandato" (página 124). E conclui que "a democracia representativa vai ser sujeita a uma cada vez mais intensa pressão participativa (primárias, referendos, júris de cidadãos, sondagens deliberativas, etc.) como vai tornar-se necessário repensar a democracia a partir das suas instituições de interesse geral, colocando a questão da qualidade da democracia no centro do debate" (página 124). Enfim, o autor abriga-se no conceito de contra-democracia do francês Pierre Rosanvallon, porém, parece-me que o verdadeiro guarda-chuva é outro e dá pelo nome de Democracia Directa!
Em suma, um livro muito interesse e, pelo seu formato de colecção de crónicas, muito fácil de ler, no qual Manuel Maria Carrilho discute um sem-número de temas que, pela sua relevância e actualidade, merecem ser mais debatidas. É claro que, pelo meio, o autor levanta questões mais controversas (por exemplo, não percebo como é que Carrilho pretende compatibilizar um Governo económico da Europa, uma identidade cultural europeia com uma política nacional da cultura alicerçada no conceito da lusofonia e da língua portuguesa...), mas, enfim, é desse despique de ideias que se faz o debate.

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