Ainda que paradoxalmente, Georges Jacques Danton e Maximilien Marie Isidore de Robespierre foram, a um só tempo, homens de excepção e duas pessoas perfeitamente comuns e banais. A actuação de cada um dos dois produziu efeitos absolutamente notáveis na História de França e na da própria Humanidade, muito embora nenhum deles fosse particularmente dotado intelectualmente, nem exibisse uma cultura ou vocação reflexiva por aí além. Danton era um homem de acção, que vivia do seu próprio movimento e do movimento que, quantas vezes involuntariamente, imprimiu ao mundo que o rodeava, enquanto que Robespierre temia a acção e era cerebral, frio e matemático. Nenhum dos dois produziu uma ideia original digna desse nome. Por definição, Danton não tinha ideias. Não as temia, não era incapaz de as produzir, mas não lhes via utilidade. As suas peças de oratória – em estilo, muito superiores às de Robespierre – eram, invariavelmente, declamadas para atacar os seus inimigos ou para se defender deles. Sobre uma das “ideias” que agitaram a vida de Robespierre – a “virtude” – Danton terá dito, em jeito de galhofa desafiadora, que “a virtude é o que todas as noites faço com a minha mulher”. Robespierre, apesar de cerebral, não passou de um leitor apressado de Rousseau e dos Enciclopedistas. As suas ideias são, mesmo para o seu tempo, vulgares. Em toda a sua existência não se lhe viu um pensamento original que não tivesse a ver com a fria matemática que o levou ao poder.
A História da Revolução Francesa e da própria França foi marcada, pelo menos a partir de 1792, pelo percurso destes dois homens e pela tensão que entre eles se estabeleceu. Perdido às mãos de Robespierre, que provocaria a sua morte em 5 de Abril de 94, Danton profetizou, a caminho do cadafalso, igual destino para o seu rival: «Vil Robespierre! Tu me seguirás. Tua casa será arrasada, e o solo que a sustém semeado de sal!”. A 28 de Julho do mesmo ano seria a vez da cabeça de Robespierre rolar para o cesto de Samson.
A personalidade de Danton é controversa, difícil e chega mesmo a ser incomodativa. Ele fora, como já se disse, essencialmente um homem de acção, de movimento. Um revolucionário. Quando se rendeu ao seu destino, deixou de se mover e, vencido, foi morto pouco tempo depois. Depois de um protagonismo ímpar na Revolução, Danton deixou-se apanhar e matar. Estava farto dos homens, dizia-se. Depois de ameaçar Robespierre («Se soubesse que aquele homem está a conspirar contra mim, comeria as suas entranhas”), foi derrotado e morto sem praticamente oferecer resistência, ele que, apenas alguns meses antes, mandara e dispusera da França como ninguém o fizera na Revolução. Ao sugerirem-lhe a fuga, terá respondido que “não se carrega a Pátria na planta dos pés”. Tendo-lhe sido proposta a resistência, afirmou: “Isso significaria apenas o derramamento de mais sangue. Já correu sangue demais. É melhor ser guilhotinado do que guilhotinar”.
Mas foi esta personagem trágica e rendida à fatalidade quem agitou as ruas de Paris para levar à queda da Monarquia em Agosto de 92. Que legitimou (há quem afirme que organizou) os Massacres de Setembro desse mesmo ano (“Estas execuções eram necessárias para acalmar o povo de Paris... É um sacrifício indispensável; aliás, o povo não se engana...”). Que provocou a queda da Gironda e levou à morte os seus protagonistas. Que instituiu o Tribunal Revolucionário para julgar, apressada e levianamente, os “crimes” políticos contra a Revolução. Que votou a morte de Luís XVI. Que enfrentou e derrotou La Fayette. Que esteve envolvido em inúmeros escândalos e suspeitas de corrupção. Que se julga até ter sido comprado e corrompido por Mirebeau e pelo partido da corte. Mas foi este homem também que tentou salvar Luís XVI do cadafalso. Que não uniu a Convenção por culpa dos Girondinos, vítimas do rancor cego que Mme. Roland lhe votava, e que, não obstante, ele não deixou de avisar do destino que os esperava nas muitas respostas de guerra às suas propostas de paz. Que levantou as defesas da França aos brados de “audácia, audácia e sempre audácia”. Que reclamou a indulgência para as vítimas da Revolução e a pacificação dos franceses no Le Vieux Cordelier, do seu amigo e companheiro de cadafalso Camille Desmoulins. Que enfrentou os esbirros do Tribunal Revolucionário e que, por fim, soube morrer de pé, segurando e dando força aos seus companheiros de infortúnio.. Danton foi a pedra angular da Revolução, simultaneamente o seu operacional, o seu governante, o seu diplomata e a sua vítima mais indesejada.
Em contrapartida, Robespierre não gostava da acção, temia a oratória, inquietava-se com as multidões, era frio, racional, quase matemático. O seu envolvimento na Revolução começara cedo, mas foi sempre mais ideológico do que operacional. É já ele quem, no meio dos Estado Gerais de 89, cedo transformados em Assembleia Nacional, proclama aqueles que seriam, mais tarde, os valores e princípios estruturantes do novo mundo político que emergiu da Revolução. É a ele que se devem as principais peças de oratória em defesa da liberdade e da igualdade. É nos seus discursos que se encontram os fundamentos da subversão do Ancien Régime e os alicerces da ordem nova que estava a nascer. É ele quem contesta a inviolabilidade do monarca e anuncia a emergência da República. Que lhe dá as cores da imaginada “virtude” da velha República Romana. Que sobrepõe a igualdade à liberdade; a Revolução à liberdade; o “povo” à liberdade; o Estado e as suas razões, mais uma vez, à liberdade. Robespierre é um filho das Luzes e um leitor de Rousseau, a quem idolatra venerandamente. É o ideólogo da Revolução e simultaneamente o seu coveiro. E um exímio estratega político que, sem necessitar de por si mesmo agir, justapõe as peças do jogo de tal modo que elas quase fatalmente se encaminham no sentido das suas vontades. O seu fanatismo revolucionário é absolutamente religioso, e, conduzindo a Revolução, manipulando atrás da cortina os finos fios que o prendem aos protagonistas da História, não consegue perceber, nem antever, o destino fatal que a sua pertinaz loucura lhe reserva. No fim de contas, Robespierre é uma vítima de si mesmo e de um caminho que traçou para os outros e também para si. Quando Danton lhe pede para ser indulgente e parar com o Terror que ele criara e mantinha (“quem te disse que alguma vez foi condenado um inocente!") e lhe implorou para libertar a França e os franceses, adverte-o que o regime terrorista que ele instituira em 93 não cabia na alma e na índole dos franceses. E que, mais cedo ou mais tarde, o povo se cansaria dele e do seu inspirador. Robespierre conduz a Revolução, mas é também ele conduzido por ela. Dito embora com outro propósito, a frase de Mirebeau aplica-se-lhe na perfeição: “Quando nos empenhamos em dirigir uma revolução, a dificuldade não é fazê-la marchar, mas contê-la”. Robespierre não cuidou de se proteger de si mesmo, e se dele se pode dizer, como Mirebeau disse ao escutá-lo as primeiras vezes na Assembleia, “Ele vai longe: acredita em tudo o que diz”, há que acrescentar que quase tudo o que diz e no qual acredita não poderia perdurar longamente. Robespierre é o ideólogo da Revolução, o seu protagonista maior, porque o que mais influenciou o futuro e que marcou a nova era política, muito para além da sua própria morte. Mas não só não lhe sobrevive, como a História não guarda dele boa memória.
Estes dois homens, mortos há mais de duzentos anos, influenciam-nos, hoje, mais do que poderemos alguma vez supor. Não só em França, onde ainda se dividem os estudiosos e os académicos entre os defensores de um e de outro, que invariavelmente abominam o outro (ainda há pouco tempo, o professor comunista da Sorbonne Albert Mathiez, um dos ícones da Escola Histórica que se dedicou a recuperar Robespierre e a condenar Danton, evitava, no percurso de sua casa para o trabalho, a estação do Metro mais próxima do seu destino profissional para não ter de cruzar-se com uma estátua aí existente de Danton...), mas também em Portugal, onde a Revolução que instituiu o regime democrático foi profundamente influenciada pelo culto dos valores jacobinos destes dois homens: a igualdade sobre a liberdade; a república sobre a monarquia; o primado do poder público sobre a sociedade civil; a laicidade; a limitação da propriedade; o receio da Igreja e o rancor para com os seus representantes (“os padres”); a manipulação e a articulação da economia pelo poder central. De certo modo, tivemos até duas figuras que lhes são paralelas, pelo menos no contexto do período revolucionário, embora com destinos, cada um deles, muito diferentes de cada uma das suas figuras patriarcais. Foram eles Mário Soares e Álvaro Cunhal.
A História da Revolução Francesa e da própria França foi marcada, pelo menos a partir de 1792, pelo percurso destes dois homens e pela tensão que entre eles se estabeleceu. Perdido às mãos de Robespierre, que provocaria a sua morte em 5 de Abril de 94, Danton profetizou, a caminho do cadafalso, igual destino para o seu rival: «Vil Robespierre! Tu me seguirás. Tua casa será arrasada, e o solo que a sustém semeado de sal!”. A 28 de Julho do mesmo ano seria a vez da cabeça de Robespierre rolar para o cesto de Samson.
A personalidade de Danton é controversa, difícil e chega mesmo a ser incomodativa. Ele fora, como já se disse, essencialmente um homem de acção, de movimento. Um revolucionário. Quando se rendeu ao seu destino, deixou de se mover e, vencido, foi morto pouco tempo depois. Depois de um protagonismo ímpar na Revolução, Danton deixou-se apanhar e matar. Estava farto dos homens, dizia-se. Depois de ameaçar Robespierre («Se soubesse que aquele homem está a conspirar contra mim, comeria as suas entranhas”), foi derrotado e morto sem praticamente oferecer resistência, ele que, apenas alguns meses antes, mandara e dispusera da França como ninguém o fizera na Revolução. Ao sugerirem-lhe a fuga, terá respondido que “não se carrega a Pátria na planta dos pés”. Tendo-lhe sido proposta a resistência, afirmou: “Isso significaria apenas o derramamento de mais sangue. Já correu sangue demais. É melhor ser guilhotinado do que guilhotinar”.
Mas foi esta personagem trágica e rendida à fatalidade quem agitou as ruas de Paris para levar à queda da Monarquia em Agosto de 92. Que legitimou (há quem afirme que organizou) os Massacres de Setembro desse mesmo ano (“Estas execuções eram necessárias para acalmar o povo de Paris... É um sacrifício indispensável; aliás, o povo não se engana...”). Que provocou a queda da Gironda e levou à morte os seus protagonistas. Que instituiu o Tribunal Revolucionário para julgar, apressada e levianamente, os “crimes” políticos contra a Revolução. Que votou a morte de Luís XVI. Que enfrentou e derrotou La Fayette. Que esteve envolvido em inúmeros escândalos e suspeitas de corrupção. Que se julga até ter sido comprado e corrompido por Mirebeau e pelo partido da corte. Mas foi este homem também que tentou salvar Luís XVI do cadafalso. Que não uniu a Convenção por culpa dos Girondinos, vítimas do rancor cego que Mme. Roland lhe votava, e que, não obstante, ele não deixou de avisar do destino que os esperava nas muitas respostas de guerra às suas propostas de paz. Que levantou as defesas da França aos brados de “audácia, audácia e sempre audácia”. Que reclamou a indulgência para as vítimas da Revolução e a pacificação dos franceses no Le Vieux Cordelier, do seu amigo e companheiro de cadafalso Camille Desmoulins. Que enfrentou os esbirros do Tribunal Revolucionário e que, por fim, soube morrer de pé, segurando e dando força aos seus companheiros de infortúnio.. Danton foi a pedra angular da Revolução, simultaneamente o seu operacional, o seu governante, o seu diplomata e a sua vítima mais indesejada.
Em contrapartida, Robespierre não gostava da acção, temia a oratória, inquietava-se com as multidões, era frio, racional, quase matemático. O seu envolvimento na Revolução começara cedo, mas foi sempre mais ideológico do que operacional. É já ele quem, no meio dos Estado Gerais de 89, cedo transformados em Assembleia Nacional, proclama aqueles que seriam, mais tarde, os valores e princípios estruturantes do novo mundo político que emergiu da Revolução. É a ele que se devem as principais peças de oratória em defesa da liberdade e da igualdade. É nos seus discursos que se encontram os fundamentos da subversão do Ancien Régime e os alicerces da ordem nova que estava a nascer. É ele quem contesta a inviolabilidade do monarca e anuncia a emergência da República. Que lhe dá as cores da imaginada “virtude” da velha República Romana. Que sobrepõe a igualdade à liberdade; a Revolução à liberdade; o “povo” à liberdade; o Estado e as suas razões, mais uma vez, à liberdade. Robespierre é um filho das Luzes e um leitor de Rousseau, a quem idolatra venerandamente. É o ideólogo da Revolução e simultaneamente o seu coveiro. E um exímio estratega político que, sem necessitar de por si mesmo agir, justapõe as peças do jogo de tal modo que elas quase fatalmente se encaminham no sentido das suas vontades. O seu fanatismo revolucionário é absolutamente religioso, e, conduzindo a Revolução, manipulando atrás da cortina os finos fios que o prendem aos protagonistas da História, não consegue perceber, nem antever, o destino fatal que a sua pertinaz loucura lhe reserva. No fim de contas, Robespierre é uma vítima de si mesmo e de um caminho que traçou para os outros e também para si. Quando Danton lhe pede para ser indulgente e parar com o Terror que ele criara e mantinha (“quem te disse que alguma vez foi condenado um inocente!") e lhe implorou para libertar a França e os franceses, adverte-o que o regime terrorista que ele instituira em 93 não cabia na alma e na índole dos franceses. E que, mais cedo ou mais tarde, o povo se cansaria dele e do seu inspirador. Robespierre conduz a Revolução, mas é também ele conduzido por ela. Dito embora com outro propósito, a frase de Mirebeau aplica-se-lhe na perfeição: “Quando nos empenhamos em dirigir uma revolução, a dificuldade não é fazê-la marchar, mas contê-la”. Robespierre não cuidou de se proteger de si mesmo, e se dele se pode dizer, como Mirebeau disse ao escutá-lo as primeiras vezes na Assembleia, “Ele vai longe: acredita em tudo o que diz”, há que acrescentar que quase tudo o que diz e no qual acredita não poderia perdurar longamente. Robespierre é o ideólogo da Revolução, o seu protagonista maior, porque o que mais influenciou o futuro e que marcou a nova era política, muito para além da sua própria morte. Mas não só não lhe sobrevive, como a História não guarda dele boa memória.
Estes dois homens, mortos há mais de duzentos anos, influenciam-nos, hoje, mais do que poderemos alguma vez supor. Não só em França, onde ainda se dividem os estudiosos e os académicos entre os defensores de um e de outro, que invariavelmente abominam o outro (ainda há pouco tempo, o professor comunista da Sorbonne Albert Mathiez, um dos ícones da Escola Histórica que se dedicou a recuperar Robespierre e a condenar Danton, evitava, no percurso de sua casa para o trabalho, a estação do Metro mais próxima do seu destino profissional para não ter de cruzar-se com uma estátua aí existente de Danton...), mas também em Portugal, onde a Revolução que instituiu o regime democrático foi profundamente influenciada pelo culto dos valores jacobinos destes dois homens: a igualdade sobre a liberdade; a república sobre a monarquia; o primado do poder público sobre a sociedade civil; a laicidade; a limitação da propriedade; o receio da Igreja e o rancor para com os seus representantes (“os padres”); a manipulação e a articulação da economia pelo poder central. De certo modo, tivemos até duas figuras que lhes são paralelas, pelo menos no contexto do período revolucionário, embora com destinos, cada um deles, muito diferentes de cada uma das suas figuras patriarcais. Foram eles Mário Soares e Álvaro Cunhal.
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