24 fevereiro 2010

uma família universal

Chegado a este ponto, é altura dea perguntar o que é que há de essencial, ou chave, na Doutrina Social da Igreja, qual a ideia-base, ou paradigma, a que um economista ou sociólogo se pode agarrar para construir uma verdadeira doutrina ou ciência económica do catolicismo?

A questão não é sem importância. A ciência económica prevalecente é uma ciência protestante. Teve origem em Adam Smith, com a publicação de A Riqueza das Nações (1776) na presbiteriana, e muito anti-católica, Escócia. Adam Smith foi influenciado pelo seu amigo (e, na minha opinião, lover) David Hume, considerado o primeiro filósofo ateu. Smith é tido como o primeiro liberal moderno. Substituindo o personalismo católico pelo individualismo protestante, ele pôde olhar para o mercado como um processo de massas; e mais, provar que este processo impessoal promovia o bem da sociedade, sem necessidade de qualquer intervenção humana, ou sequer divina. É a célebre mão-invisível. Bastava que cada homem fosse deixado livre para prosseguir os seus próprios interesses.

Nesta heresia protestante, que é a ciência económica moderna baseada no mercado, a autoridade não é precisa para nada, nem sequer a autoridade de Deus, menos ainda a do seu representante na Terra, o Papa. Cada homem é despido das suas características peculiares - a sua personalidade - e torna-se igual aos outros; na realidade, as leis do mercado verificam-se com tanto mais precisão quanto mais os homens forem iguais uns aos outros. E, finalmente, perde-se todo o sentido católico de comunidade; cada homem passa a ser uma ilha, um átomo da sociedade; e racionalmente assim, porque se cada homem é igual aos outros, o que é que ele pode dar aos outros, ou receber deles, em resultado de uma vida partilhada em comunidade? Nada - excepto, talvez, o benefício económico - porque ninguém ambiciona viver em comum com alguém que seja igual a si próprio.

Removendo a autoridade, o personalismo e o comunitarismo católico, a ciência económica moderna permaneceu estranha - na realidade, adversa -, à tradição católica. Não existe um único Prémio Nobel da Economia oriundo dos países predominantemente católicos do sul da Europa e da América Latina. A maioria são americanos (34), depois vêm os ingleses (8), a seguir os noruegueses (2) e os suecos (2), existe um alemão, um holandês, um russo, um israelita e um francês. Não há um espanhol, um italiano, um português, um brasileiro, um argentino.

A situação não é de todo incompreensível, e menos ainda injusta. Os economistas dos países católicos têm mais dificuldade em sobressair em quadros culturais e de pensamento que, sendo protestantes, lhes são estranhos. Depois, e mais importante, em lugar de desenvolverem uma doutrina ou ciência económica assente na sua tradição católica, eles incorrem no vício muito católico de passarem a vida de nariz no ar a ver o que é que se passa lá fora, a admirar e a tomar como verdade tudo o que é estrangeiro, em lugar de se concentrarem - desprezando ao mesmo tempo -, tudo aquilo que lhes pertence e é das suas tradições.

Veja-se, por outro lado, o que está a acontecer na zona Euro. A teoria económica que presidiu à União Monetária é a única teoria económica que existe, a convencional e de tradição protestante. Porém, os países que nessa União agora estão em aflições são os PIIGS - Portugal, Irlanda, Itália, Espanha, todos católicos, mais a Grécia, cuja tradição ortodoxa é muito próxima da católica e igualmente personalista. (*) Não surpreende. A União Monetária está assente numa racionalidade económica que é totalmente estranha à tradição católica.

Voltando agora à questão inicial: existe alguma ideia-chave, algum paradigma, a que um economista ou sociólogo se possa agarrar para construir uma teoria económica (ou socioeconómica) do catolicismo?.

O catolicismo assenta na ideia de comunidade, uma comunidade que está ao serviço da pessoa humana, mas à qual, por seu turno, o homem deve respeito e, em certos casos, obediência. O cimento dessa comunidade é o amor ou caridade cristã que é o valor supremo do catolicismo. Outros altos valores são defendidos num patamar logo a seguir - como a igualdade, a liberdade, a autoridade, a justiça, a solidariedade, a personalidade - que, possuindo o potencial para entrarem em conflito, só podem conviver através de um delicado equilíbrio.

Existe alguma coisa no mundo onde confluam estas ideias e forneça alguma luz ao economista ou ao sociológo que pretenda construir uma teoria socioeconómica do catolicismo? A resposta é afirmativa. Existe. É a instituição da família. E isto devia ser óbvio porque, no fim de contas, aquilo que a Igreja Católica pretende é tornar toda a humanidade uma família universal.

Quando recentemente tive esta revelação fiquei mais tranquilo, mas ao mesmo tempo perplexo. Afinal é simples, uma teoria socioeconómica do catolicismo só tem que defender os valores, as instituições, os comportamentos e os processos que ocorrem também na família. A única diferença é que agora se trata de uma família de dez ou cinquenta milhões, no caso de um país, ou mesmo de seis mil milhões, no caso do mundo inteiro - e não de família de seis ou sete pessoas -, e isso certamente irá colocar problemas específicos. De qualquer modo, como ponto de partida de uma teoria socieconomica do catolicismo, a ideia de família é a mais simples que se poderia imaginar, porque é uma ideia perceptível por todas as pessoas. No meio de toda aquela complexidade teológica, e da aparente aridez da sua Doutrina Social, afinal o que a Igreja Católica pretende é uma coisa muito simples - construir uma família onde quer que existam pessoas.

(*) Eu tenho gracejado dizendo que os gregos são ainda piores do que nós, portugueses, porque além de uma tradição igualmente personalista que os leva a comportarem-se como meninos mimados quando o Pai está ausente de casa, cada grego está também convencido que é o Sócrates, o Platão ou o Aristóteles. Nós em Portugal só temos o Sócrates. Eles têm o Sócrates, o Platão e o Aristóteles, o que torna as coisas muito mais difíceis.


Sem comentários: