No ano já distante de 1957, ia de vento em popa o regime de António de Oliveira Salazar, o professor Óscar Lopes, deu à estampa um panfleto político em forma de introdução ao livro de Albert Mathiez, a História da Revolução Francesa. Óscar Lopes era um comunista confesso – no que estava no seu pleníssimo direito, que aderiu corajosamente ao Partido Comunista Português, na clandestinidade, em 1945. Por sua vez, o autor do livro traduzido, Albert Mathiez, era também um comunista militante, e pertencia, enquanto historiador, a uma tendência que vê – e bem - na fase jacobina da Revolução Francesa o momento da fundação histórica do movimento comunista. Essas convicções e uma profunda admiração por Robespierre e pelo seu Comité de Salvação Pública são patentes ao longo de toda a obra de Mathiez. Na introdução feita por Óscar Lopes estão também presentes, podendo ler-se coisas deste género: «Assim, por exemplo, apesar da sua visível apologia de Robespierre, que surge como a mais elevada e lúcida consciência da tragédia central da Revolução. (...) Mathiez não se esquece de sublinhar, muito melhor, em geral, que os seus discípulos, que as medidas revolucionárias do Incorruptível estavam na sequência inelutável, e por ele imprevista, da sua estratégia e, portanto, da sua táctica, que foram, pode dizer-se, as da pequena burguesia do seu tempo. (...) a táctica de procurar para a pequena burguesia, que representa, a aliança dos camponeses sem terra e dos assalariados sem trabalho nem pão, e porque, levado insensível e involuntariamente até à ditadura por pressão da guerra exterior e da guerra civil; (...) embora estas alterassem a proporção das forças que Robespierre desejou unir e fizessem o seu individualismo burguês ceder terreno aos métodos, hoje largamente aceites, da planificação democrática e do cooperativismo voluntário e consciente.». Esta apologia do modelo econômico, político e social jacobino, muito próxima do que seria, ao tempo em que escreve o historiador, o modelo soviético, foi publicada, em Portugal, no ano de 1957.
É certo que Óscar Lopes conhecera a prisão política durante o ano de 1955. Mas foi julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto e reintegrado em 1957 no ensino oficial no Liceu Rodrigues de Freitas. Veja-se, em contraponto, o que sucedeu na Revolução Francesa, em pleno jacobinismo no ano de 94, aos jacobinos indulgentes, como Desmoullins, por ter escrito no nº 3 do seu jornal, o Le Vieux Cordelier, em defesa da pacificação nacional e do fim do Terror... Ou o que sucedia diariamente, nessa mesma época, no espaço de influência soviético aos intelectuais como Soljenitzine. Por outro lado, não deixa de ser curioso ter sido nesse mesmo ano de 57 que foi publicado o livro de cujos excertos introdutórios reproduzimos e que consistem, na sua generalidade – o livro e a sua introdução – na defesa do papel histórico de Robespierre e justificação da «necessidade» da ditadura jacobina, sem atender ao que ela verdadeiramente significou e à tragédia que causou.
Óscar Lopes pertencia a um grupo expressivo de intelectuais portugueses que, influenciados pelo marxismo literário e académico, dominava, muito antes do 25 de Abril, a Universidade e a Escola portuguesas, e muitos dos círculos culturais nacionais (o que era uma forma de se dizer, ao tempo, políticos). A sua referência maior era a universidade francesa, sobretudo a Sorbonne (por onde pairava Duverger), e esses intelectuais, ditos «progressistas», tiveram uma verdadeira apostasia em 1968, nos tumultos de Maio, onde julgavam vislumbrar a vitória aliada da universidade (a que pertenciam) e da revolução (a que gostariam de pertencer). Desses ruídos chegariam a Portugal, nos anos seguintes, réplicas de muito menor intensidade sísmica e gravidade.
A desculpabilização histórica e moral do terror jacobino a que se dedicaram, foi seguida, ipsis verbis, na desculpabilização do terror soviético, mesmo até com os mesmíssimos argumentos: a necessidade da ditadura esquerdista («patriótica») por causa do estado de miséria do povo e da guerra agressora imperialista (na Revolução Francesa, da Áustria e da Inglaterra, no século XX, dos Estados Unidos da América); a importância dos sacrifícios pessoais perante a grandeza e magnificência da transformação a operar; a inevitabilidade das medidas económicas e sociais introduzidas em virtude da concentração do capital e da exploração do povo, etc., etc., etc..
Foi com este verdadeiro «ópio dos intelectuais» de que nos falava Aron, que vivemos em Portugal durante décadas. Mesmo antes do 25 de Abril elas circulavam com relativa tolerância: a ditadura académica de Salazar perseguia menos as idéias do que algumas pessoas, sobretudo se estas fossem militantes oposicionistas activos do regime vigente. Mas as ideias tinham uma razoável e, por vezes, próspera liberdade, sobretudo se travestidas de cultura e se não colidissem frontalmente com o status quo salazarista. O próprio regime resignou-se, aliás, a aceitar que, nesses tempos, a inteligência e a cultura estavam à esquerda, complexo que ainda hoje assombra a direita. E face a esse enorme poder cultural e político – que o regime temia e endeusava -, raramente se respondia com armas equivalentes.
A elite política que assumiu os destinos do país no pós-25 de Abril foi resultado dessa mentalidade socialista académica, snob, elitista e preconceituosa - muito de origem francesa e dos quadros mentais que nela introduziu a Revolução, e só se atenuou nos dias correntes, regra geral pela ignorância crassa e generalizada dos quadros políticos médios que por aí andam. Todavia, ainda que muitos deles não o saibam e disso não se apercebam, a herança genética dos pais perdura-lhes na massa do sangue, e é por essa razão e por esta mentalidade que continuamos a ser um país estruturalmente socialista.
É certo que Óscar Lopes conhecera a prisão política durante o ano de 1955. Mas foi julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto e reintegrado em 1957 no ensino oficial no Liceu Rodrigues de Freitas. Veja-se, em contraponto, o que sucedeu na Revolução Francesa, em pleno jacobinismo no ano de 94, aos jacobinos indulgentes, como Desmoullins, por ter escrito no nº 3 do seu jornal, o Le Vieux Cordelier, em defesa da pacificação nacional e do fim do Terror... Ou o que sucedia diariamente, nessa mesma época, no espaço de influência soviético aos intelectuais como Soljenitzine. Por outro lado, não deixa de ser curioso ter sido nesse mesmo ano de 57 que foi publicado o livro de cujos excertos introdutórios reproduzimos e que consistem, na sua generalidade – o livro e a sua introdução – na defesa do papel histórico de Robespierre e justificação da «necessidade» da ditadura jacobina, sem atender ao que ela verdadeiramente significou e à tragédia que causou.
Óscar Lopes pertencia a um grupo expressivo de intelectuais portugueses que, influenciados pelo marxismo literário e académico, dominava, muito antes do 25 de Abril, a Universidade e a Escola portuguesas, e muitos dos círculos culturais nacionais (o que era uma forma de se dizer, ao tempo, políticos). A sua referência maior era a universidade francesa, sobretudo a Sorbonne (por onde pairava Duverger), e esses intelectuais, ditos «progressistas», tiveram uma verdadeira apostasia em 1968, nos tumultos de Maio, onde julgavam vislumbrar a vitória aliada da universidade (a que pertenciam) e da revolução (a que gostariam de pertencer). Desses ruídos chegariam a Portugal, nos anos seguintes, réplicas de muito menor intensidade sísmica e gravidade.
A desculpabilização histórica e moral do terror jacobino a que se dedicaram, foi seguida, ipsis verbis, na desculpabilização do terror soviético, mesmo até com os mesmíssimos argumentos: a necessidade da ditadura esquerdista («patriótica») por causa do estado de miséria do povo e da guerra agressora imperialista (na Revolução Francesa, da Áustria e da Inglaterra, no século XX, dos Estados Unidos da América); a importância dos sacrifícios pessoais perante a grandeza e magnificência da transformação a operar; a inevitabilidade das medidas económicas e sociais introduzidas em virtude da concentração do capital e da exploração do povo, etc., etc., etc..
Foi com este verdadeiro «ópio dos intelectuais» de que nos falava Aron, que vivemos em Portugal durante décadas. Mesmo antes do 25 de Abril elas circulavam com relativa tolerância: a ditadura académica de Salazar perseguia menos as idéias do que algumas pessoas, sobretudo se estas fossem militantes oposicionistas activos do regime vigente. Mas as ideias tinham uma razoável e, por vezes, próspera liberdade, sobretudo se travestidas de cultura e se não colidissem frontalmente com o status quo salazarista. O próprio regime resignou-se, aliás, a aceitar que, nesses tempos, a inteligência e a cultura estavam à esquerda, complexo que ainda hoje assombra a direita. E face a esse enorme poder cultural e político – que o regime temia e endeusava -, raramente se respondia com armas equivalentes.
A elite política que assumiu os destinos do país no pós-25 de Abril foi resultado dessa mentalidade socialista académica, snob, elitista e preconceituosa - muito de origem francesa e dos quadros mentais que nela introduziu a Revolução, e só se atenuou nos dias correntes, regra geral pela ignorância crassa e generalizada dos quadros políticos médios que por aí andam. Todavia, ainda que muitos deles não o saibam e disso não se apercebam, a herança genética dos pais perdura-lhes na massa do sangue, e é por essa razão e por esta mentalidade que continuamos a ser um país estruturalmente socialista.
Sem comentários:
Enviar um comentário