Aquilo que de melhor existe no protestantismo é o que ele guardou do catolicismo, escreveu Chesterton. Em poucas áreas esta afirmação é tão verdadeira como na que diz respeito à democracia. (Para outro exemplo, veja o post seguinte).
Desde os primórdios do Cristianismo que a Igreja defende, e pratica, a democracia. Os Papas sempre foram eleitos democraticamente, e no início até por um sufrágio muito vasto que, além dos clérigos, incluia também os leigos. Mais ainda, na Igreja Católica qualquer homem pode ser Papa. A única condição que se lhe exige é que seja baptizado, um sacramento que qualquer padre de paróquia lhe dispensará prontamente. Esta posição reflecte não apenas a abertura da Igreja, mas também a sua grande coerência doutrinária (era melhor que, se Cristo voltasse à Terra, ele não pudesse ser eleito Chefe da sua própria Igreja)
Muito antes dos modernos Parlamentos, já existiam Parlamentos em todo o mundo católico, quer na Inglaterra pré-Reforma quer na Península Ibérica (aqui chamados Cortes) numa altura em que a Igreja tinha uma influência determinante em toda a sociedade ocidental. Dir-se-à que não foi a Igreja Católica que inventou a Democracia, e isso é verdade. Mas não foram também seguramente os protestantes que o fizeram, como a Inglaterra ou os EUA. A democracia moderna é, em última instância, uma herança dos gregos, mas também aqui é bom que a Igreja Católica não deixe os seus créditos por mãos alheias. As ideias dos gregos, incluindo a ideia democrática, só chegaram à modernidade porque a Igreja Católica, nos seus mosteiros e nos seus conventos, as guardou e as protegeu da destruição dos bárbaros.
A Doutrina Social da Igreja, nas palavras do seu fundador, o Papa Leão XIII, "não proíbe preferir governos fiscalizados de forma popular" nem "reprova qualquer forma de poder desde que adequada a assegurar o bem dos cidadãos". Na Encíclica Sollicitudo Rei Socialis (A Solicitude Social da Igreja, 1987), consagrada ao desenvolvimento humano, o Papa João Paulo II vê na democracia uma contribuição para o desenvolvimento:
"Outras nações precisam de reformar algumas estruturas injustas e, em particular, as próprias instituições políticas, para substituir regimes corruptos, ditatoriais e autoritários por regimes democráticos, que favoreçam a participação" (SRS: 44).
Na Encíclica Pacem in Terris (1963), o Papa João XXIII faz questão de salientar que não existe nenhuma incompatibilidade entre o catolicismo e a democracia. Pelo contrário:
"Do facto de a autoridade derivar de Deus, não se segue que os homens não tenham a liberdade de eleger as pessoas investidas na missão de a exercer, bem como de determinar as formas de governo e os limites e regras segundo os quais se há-de exercer a autoridade. Por esta razão, a doutrina qu e acabamos de expor é plenamente conciliável com qualquer espécie de regime genuinamente democrático". (PT: 52)
Porém, foi ainda durante a Segunda Guerra Mundial, numa altura em que os vencedores não eram ainda certos, e menos certo era ainda o regime político sob o qual viriam a organizar-se, que o Papa Pio XII, consagrou a Encíclica Benignitas et Humanitas (1944) ao tema da democracia. Trata-se do primeiro reconhecimento explícito, por parte da Igreja Católica, das virtualidades positivas da democracia moderna, depois das experiências traumatizantes que se seguiram à Revolução Francesa. Porém, é também neste documento que se contém o limite a partir do qual a confiança da Igreja na democracia tende a desvanecer-se. De forma não surpreendente, esse momento acontece quando a democracia se torna um fenómenos de massas e, portanto, um processo impessoal:
"Pelo que fica dito, aparece clara outra conclusão: a massa - como nós acabámos de defini-la - é a inimiga capital da verdadeira democracia e do seu ideal de liberdade e igualdade". (BH: 17)
Não foram apenas as democracias saídas da Revolução Francesa que tinham alertado a Igreja para os perigos da massificação trazida pelo sufrágio universal. A sua própria história na eleição democrática do Papa a tinha levado de um sufrágio aberto aos padres e até ao leigos para o actual sistema em que o Papa é eleito apenas por cerca de uma centena de cardeais.
A democracia moderna com o seu sufrágio universal é, tal como o mercado, um processo impessoal, onde todos participam mas ninguém é responsável pelo resultado final. Quando cem eleitores escolhem democraticamente o líder da sua comunidade, no caso da escolha ser má, ainda é possível responsabilizar cada um deles pelo resultado final, porque cada um deles teve, ainda assim, um peso de 1% nesse resultado. Mas quando a eleição é feita entre 10 ou 200 milhões de eleitores, como acontece nas democracias modernas, o peso de cada eleitor no resultado final é insignificante. Torna-se impossível responsabilizar alguém por uma má escolha, e o mau chefe poderá então ter de ser removido por meios anti-democráticos, anulando a principal vantagem da democracia, que é a de permitir a substituição pacífica dos governantes (*).
Mais ainda, num argumento que é constantemente reiterado pela Igreja a propósito dos processos e instituições impessoais - como a democracia, o mercado e o próprio Estado - não possuindo esses processos e instituições ninguém em posição de autoridade que os controle, eles correm o risco de serem apropriados por grupos de interesses particularmente bem colocados, que os utilizam em seu benefício próprio e contra o bem comum de toda a sociedade. (**)
Por isso, a Igreja Católica não pode subscrever uma democracia ilimitada. Nem qualquer homem racional o pode fazer. O economista James Buchanan, líder da Escola da Escolha Pública, ganhou o Prémio Nobel em 1986 largamente por este argumento. Friedrich Hayek, Prémio Nobel em 1974, também já lá tinha chegado, mostrando que uma boa parte da ciência e da filosofia moderna não passa, na realidade, de uma reinvenção da roda.
(*) Este processo de substituição anti-democrática de uma má escolha democrática poderá estar a ocorrer presentemente em Portugal.
(**) A acuidade destes argumentos na situação presente é extraordinária, trazendo imediatamente ao espírito os partidos políticos no que diz respeito à democracia, as diferentes corporações no que diz respeito ao Estado, ou as grandes instituições financeiras no que concerne à actual crise económica e financeira.
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