24 fevereiro 2010

está no futuro

Antes de analisar o modo de funcionamento, e as instituições, de uma socieconomia de tradição católica, eu gostaria de voltar a um ponto que abordei brevemente aqui, e que me foi sugerido por uma passagem num livro de Joseph Ratzinger publicado originalmente em 1968 (Introduction to Christianity, op. cit.). Trata-se da alteração do paradigma medieval "verum est ens" (a verdade está no ser) para o paradigma moderno "verum quia factum" (a verdade está nos factos).

O primeiro passo nesta alteração foi dado por Descartes, o racionalista: "A verdade está no intelecto" (Cogito ergo sum). Veio depois David Hume, o empiricista: "A verdade está nos factos". Finalmente, Kant fez a síntese: "A verdade está nos factos depois de filtrados pelo intelecto".

Antes de descrever algumas das mais importantes consequências desta alteração de paradigma, volto a um tema recorrente dos meus posts, que é o da pergunta que Pilatos colocou a Cristo ("Que é a verdade?"), uma pergunta colocada de chofre e sem esperança de obter resposta, uma pergunta marota, feita ao jeito de "Vê lá se te aguentas com esta". Cristo não respondeu, mas, se o tivesse feito, a resposta teria muito seguramente sido: "Eu" ("A verdade está no ser", no Homem).
Pilatos não era um mau homem, na realidade, ele possuía até algumas das características do homem moderno. Não apenas se comportou como um moderno democrata quando entregou cRisto ao julgamento da multidão dos fariseus, como também possuía a marca distintiva de um intelectual moderno. Ele estava intimamente convencido de que Cristo estava inocente. A sua própria mulher o avisou que tivera um sonho e que ele não deveria condenar aquele Homem. Mas ele precisava de factos ("A verdade está nos factos"). E Cristo não lhos deu.
Esta mudança de paradigma teve várias consequências. Uma delas foi a de conferir um estatuto importante aos intelectuais porque são eles que decidem a verdade: a figura do intelectual é uma criação da modernidade. Mais importante, porém, esta alteração de paradigma conduziu ao desenvolvimento das ciências naturais e das chamadas ciências do homem. Daqui resultou, em particular, o historicismo, porque é na história que se encontram os factos; e a teoria da evolução de Darwin não é senão mais uma manifestação desta nova atitude em relação à verdade. O homem passou a ser estudado sobretudo no seu aspecto exterior - porque a alma não é um facto observável -, e isso contribuiu para degradar a pessoa humana, substituindo o personalismo católico, onde todos são diferentes, pelo individualismo moderno, onde todos são iguais. De facto, vistos de fora, todos os homens possuem uma cabeça, dois braços, dois olhos e duas pernas.
Até que chegou Marx e, antes dele, Hegel. A verdade está nos factos, portanto na história. Antes de estabelecer as suas previsões acerca do capitalismo, o próprio Marx fez um estudo histórico exaustivo acerca das relações de produção. Porém, para um intelectual, é certamente frustrante ficar a contemplar of factos da história, como se estivesse a contemplar as peças de um museu. Que tal se ele próprio fizer os factos, e em lugar de ser um espectador do passado se tornar o seu principal actor no futuro? Nas palavras do próprio Marx "Até agora os filósofos interpretaram meramente o mundo de várias maneiras; é necessário mudá-lo". A verdade passa a estar no fazer ("verum quia faciendum"). Surgem as ideologias e a ideia de progresso: a verdade está no futuro. O pensamento concreto, do aqui e do agora, cede o passo ao pensamento abstracto, do distante e do futuro.
E tudo isto se passa perante a incredulidade da Igreja Católica que continua a afirmar que a verdade está no homem ("verum est ens") que é uma realidade concreta, e a maior de todas elas. Sendo assim, a Igreja não pode ter consideração por qualquer forma de engenharia social ou humana, que pretenda formatar a sociedade ou o homem, substituindo-se a Deus, porque ela não está orientada para o homem, mas para factos que são produtos do próprio homem e estão sujeitos ao erro e às ambições humanas.
A Igreja, não pode, mais, aceitar como boas as tentativas de construção de modelos sociais abstractos, em que o critério de bondade é a maximização do bem-estar social, como acontece na ciência económica convencional, porque o homem não é uma entidade abstracta, nem a sociedade o seu fim último, e é isso que procurarei ilustrar no meu próximo post. Pelo contrário, cada homem é uma realidade concreta e é ele o fim último da sociedade. Até há cerca de vinte anos, a Enciclopédia Católica afirmava que os Papas não precisavam saber Economia. Na altura, a afirmação chocou-me. Hoje, nem tanto, mesmo depois de ter sido suprimida.

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