20 fevereiro 2010

aos outros


Ao escrever o meu último post e ao meditar sobre o conceito católico de comunidade e como ele se ajusta em primeiro lugar à família, ocorreu-me voltar a uma antiga distinção que já tratei neste blogue - a distinção entre liberdade católica e liberdade protestante. A questão é tanto mais importante quanto é certo que o mito de que não existe liberdade nos países católicos foi criado pelos protestantes, e foram eles que contribuiram para substituir o conceito católico de liberdade pelo conceito protestante que hoje tende cada vez mais a prevalecer em Portugal.

Na altura enfatizei que a concepção católica de liberdade se traduz essencialmente numa liberdade de acção enquanto a concepção protestante é sobretudo uma liberdade de pensamento. Os católicos, dentro de certos limites que são muito amplos, podem fazer tudo aquilo que quiserem, desde que não digam certas coisas; os protestantes, dentro de limites que são também muito amplos, podem pensar tudo aquilo que quiserem, desde que não façam certas coisas. A censura é uma instituição tipicamente católica, mas o proibicionismo é uma instituição distintamente protestante.

Nunca ocorreria mesmo a um ditador católico proibir as pessoas de beber alcool, mas tal já ocorreu em democracias protestantes. Não ocorreria hoje em dia em nenhum país católico proibir as pessoas de beberem a partir da uma da manhã. Mas ocorre nos países protestantes. Tal como seria impensável num país católico proibir o Chefe de Estado de ser judeu, muçulmano ou hindu. Porém, na Inglaterra é proibido que ele seja católico. E quanto à proibição de fumar? Só podia ter origem em países protestantes e mesmo quando os países católicos pretendem imitar essa proibição (eles possuem essa tendência permanente para a imitação...) a experiência já demonstrou que falham invariavelmente. Como notou Chesterton, o protestantismo trata os homens como se fossem crianças. O catolicismo é a única tradição cristã que os trata como verdadeiros homens - isto é, como seres livres.

E a primeira experiência da liberdade católica ocorre precisamente no seio da família quando o jovem adulto se liberta dos pais. É nessa altura, quando ele adquiriu condições de maturidade e autonomia, que ele começa a ser verdadeiramente um homem livre. Mas será este jovem adulto livre de fazer ou dizer tudo aquilo que lhe dá na real gana, sem estar sujeito a censura ou mesmo a repreendimento? Por outras palavras, está a liberdade deste jovem adulto isenta de qualquer autoridade? Claro que não. Ele continua sujeito à autoridade dos pais, os quais se sentem sempre livres para lhe chamar a atenção, repreendê-lo, ou até castigá-lo. Essa autoridade deriva de terem sido os pais quem lhe concedeu a liberdade.

Portanto, na tradição católica um homem livre pode fazer tudo, fumar, beber, perder noites, falar o que quiser, e muito mais - mas pode fazer tudo dentro de certos limites, que são os limites impostos pela sua cultura (católica), tal como representada pela autoridade dos pais. Ele não pode embriagar-se ao ponto de se tornar um alcoólico, perder noites ao ponto de perder o emprego, fumar ao ponto de se suicidar, falar desbragadamente ao ponto de insultar. Isso ele não pode. Os pais não aprovariam. E foram eles que primeiro lhe deram a liberdade.

As funções de pai e mãe, ao contrário das de marido e esposa, são funções para a vida e chegará o momento em que os pais morrem. Será que o nosso jovem adulto, agora tornado um verdadeiro adulto, passa a ser absolutamente livre, sem que a sua liberdade seja tutelada por alguém? Nesta altura, muito provavelmente, este homem já estará a educar filhos para a liberdade e é nessa condição, quando ele já não pode recorrer aos pais, que ele vai sentir a presença de uma autoridade de um nível que é ainda superior ao dos pais.

Os pais, mais do que o capitão de um navio em mar de tormentas, são chamados, em certos momentos, a tomar decisões acerca da vida dos filhos que são decisões verdadeiramente dramáticas. Eles querem o melhor para o filho, mas não sabem se a decisão que tomaram acerca dele (pode ser a da orientação para a sua profissão, pode ser um castigo, pode ser reprovar um amigo ou um namorado, pode ser uma proibição, ou até um prémio, pode ser como tirá-lo da droga, ou forçá-lo a ser um bom estudante, pode ser em que hospital tratá-lo de uma doença grave, pode ser um milhão de muitas outras coisas diferentes) é a decisão certa. E, no entanto, eles terão de responder um dia por essa decisão, em primeiro lugar perante o filho. Porém, no momento da decisão, e para que a sua consciência fique limpa de que fizeram tudo e o melhor que podiam fazer na altura, quem os pode ajudar e perante quem vão eles, em última instância, responder?

A resposta é dada pelo capitão de Dostoevski n' O Possesso. Depois de assistir em silêncio a uma discussão de intelectuais que chegaram à conclusão de que Deus não existe, ele levantou-se, pegou no seu chapéu de marinheiro e despediu-se, não sem antes perguntar: "Mas se não existe Deus, como posso eu ser um capitão?".

É esta a concepção católica de liberdade. É uma liberdade tutelada pela autoridade, para que seja sempre uma liberdade orientada para o bem. Diferente é a concepção protestante. Esta é uma liberdade abstracta e de pensamento que, como tal, serve para tudo, para o bem e para o mal, e sendo uma liberdade sem autoridade, serve tantas vezes para o bem como para o mal. A melhor forma de ilustrar esta concepção de liberdade é a de invocar aquelas manifestações públicas, frequentes em Portugal após o 25 de Abril, em que todos gritam pela liberdade sem especificarem em que, e em que condições (se algumas), querem ser livres. Ou então através dos comportamentos daqueles que reivindicam esta forma de liberdade.

Recentemente, fui convidado para assistir a uma conferência da minha ex-colega de blogue Helena Matos sobre Liberdade de Expressão, num fórum onde eu próprio já fiz uma conferência sobre outro tema. Respondi assim ao convite:

Caro (...),

(...)
Quanto ao convite para ouvir a Helena Matos agradeço, mas declino. Escrevíamos os dois no Blasfémias. Até que ela, o CAA, o Gabriel e o JCD fizeram um ultimato aos restantes membros do blogue: se eu lá continuasse a escrever, eles abandonavam. Quando soube de tal coisa, saí eu. Mas, está a ver, ouvir a Helena Matos a falar de liberdade de expressão seria um bocado pesado. Ela é uma adepta da liberdade, desde que seja para ela em primeiro lugar.
Abraço.

P. Arroja


Esta é a concepção protestante de liberdade - uma liberdade abstracta que dá para tudo. Para se ser livre até para tirar a liberdade aos outros.

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