O Carlos Santos escreveu um post interessantíssimo onde coloca algumas reservas ao liberalismo clássico inspirado na obra de Adam Smith. Eu começaria por uma questão prévia, esclarecendo que, se Adam Smith pode ter sido o fundador da Economia Clássica fundada no livre mercado, ele não foi nem completamente original, nem absolutamente inovador. Antes dele, o ordinalismo fora aplicado à economia pelos fisiocratas, a manipulação da massa monetária e as suas consequências inflaccionárias (a “quebra da moeda” ocorrida em Espanha com a subtração da prata às “monedas de véllon”) foram abundantemente tratadas pela Escola de Salamanca, ou Segunda Escolástica, e, para não irmos muito longe, os princípios liberais da propriedade e da limitação do intervencionismo tinham sido trabalhados, entre outros autores, por John Locke. Como moralista, a contribuição de Smith para o pensamento liberal também não foi propriamente notável, e a sua fundamentação do direito natural nas “leis da Divindade” foi também precedida e sucedida por muitos outros pensadores. Ademais, mesmo como economista, há quem o desconsidere e rotule de “medíocre”, como fez Murray Rothbard na sua magnífica História do Pensamento Económico. Smith é, assim, uma referência histórica, um marco fundador da economia clássica, um autor que tem o seu lugar no liberalismo clássico, mas não o esgota.
Nessa medida, interessam-me, de momento, bastante mais as objecções do Carlos Santos ao liberalismo e aos processos de livre-mercado, do que as contribuições de Adam Smith para a fundamentação desse sistema. O Carlos afirma, em síntese, que o mercado não é uma instituição socialmente natural, já que, em sua opinião, o mecanismo ordenador da troca – a catalaxia – não se encontra gravado no código genético humano, e que nada leva a supor que o sentido da História seja o livre-mercado. O Carlos tem e não tem razão, como veremos.
Eu estou inteiramente de acordo com a ideia de que os liberais – sobretudo os mais próximos do nosso tempo, têm desconsiderado o estado como instituição natural das sociedades humanas. Julgo mesmo que cometem um erro grave, porque viram as costas ao inimigo principal, recusando-se praticamente a reconhecê-lo, e refugiam-se num liberalismo meramente economicista, que lhe retira dignidade e, sobretudo, a sua natureza filosófica geral. Em abono da verdade, Hayek terá sido provavelmente o liberal clássico que melhor compreendeu a necessidade de perceber o estado e a política, tendo-lhes dedicado o melhor das suas obras, a meu ver o LLL, Os Fundamentos da Liberdade, A Presunção Fatal e o inevitável Caminho para a Servidão. Mas não tem sido muito seguido, infelizmente.
As questões sobre as quais o Carlos Santos discorreu são, a meu ver, as seguintes: a origem do estado é natural ou artificial, por outras palavras, as sociedades humanas podem prescindir ou não do estado e do governo?; o mercado é uma instituição social natural ou não (outra questão, que não tratamos aqui, é a de saber se ele é o melhor mecanismo de decisão, ou se a decisão pública pode ser mais vantajosa)?; existe incompatibilidade entre ambas, e a existência de qualquer uma delas exclui a outra, ou complementa-a? Não querendo ultrapassar o espaço máximo legítimo para um texto editado num blog, vou tentar sintetizar o que penso sobre estes assuntos.
Se nos fundarmos na História, concluiremos que o estado faz parte da natureza humana e social. Ao longo dos tempos, não encontramos sociedades sem estado (seja qual for a forma, das muitas, que ele pode assumir), nem sem governo, nem sem instituições que exerçam poderes públicos de soberania. A explicação habitual de alguns liberais (que ainda há dias escutei numa sessão pública) é a de que o estado é uma máquina de opressão instituída por uma oligarquia dirigente e exploradora dos indivíduos. É uma “resposta” francamente insuficiente, sem consistência histórica, de resto, muito próxima da teoria marxista do estado. Acontece que o estado é, quase sempre, historicamente criado a pedido dos cidadãos, e não exactamente por gangs de malfeitores, embora possa ser tomado por estes, o que também não é raro acontecer. Alguma explicação deve haver para isto e essa explicação não é decididamente a de Karl Marx, ainda que travestido por roupagens “liberais”.
Se olharmos, também, para a História, veremos que os processos de mercado não se impõem automaticamente nas sociedades humanas, encontrando frequentes resistências individuais e colectivas à sua criação. O caso dos países do leste europeu aludido pelo Carlos não serve de exemplo, porquanto nem os processos de desestatização estão concluídos, nem a burocracia estatista desaparece (ou pode ser prescindível no processo de transição) de um dia para o outro, nem um sistema centralista, planificado e socialista se transforma numa economia capitalista num período de poucos anos. O facto de ainda se lá não ter chegado plenamente significa tão-somente que a transformação das economias e das políticas leva tempo, mas não necessariamente que seja impossível. O raciocínio do Carlos, segundo o qual quem viveu em economia planificada nunca, ou dificilmente, se habituará a viver numa economia aberta, segue os mesmos preconceitos de quem pensa que quem viveu longamente em ditadura dificilmente, ou nunca, se conformará com a democracia. Penso até que significam exactamente o mesmo.
Eu julgo, assim, que os liberais teriam vantagens óbvias em perceber que o estado é uma instituição social, tão antiga quanto a vida do homem em sociedade, e que a sua existência se justifica, na transformação do estado de natureza para o estado político, por necessidades individuais e colectivas efectivamente sentidas. A não ser assim, algures ao longo da História encontraríamos sociedades sem estado. O facto, é que as não encontramos. Como julgo, também, que o mercado, se entendido como o processo de livre interacção entre os indivíduos para disporem do que é seu, é uma característica da natureza humana, e que é o melhor modo dos indivíduos se realizarem na sua humanidade, de trocarem informação e de tomarem decisões. Julgo que esse processo cataláctico é melhor ordenador da vida em sociedade do que o que é imposto, suave ou brutalmente, pelo estado democrático ou totalitário. Falamos, todavia, em planos distintos, que se entrecruzam, que são frequentemente antagónicos, embora não possam dispensar-se: a sociedade política e a sociedade civil. Compreender que ambas existem, é fundamental para o pensamento liberal.
De facto, o plano do estado é o da soberania e o dos poderes públicos, enquanto que o do mercado é o domínio do individuo e das suas formas de livre associação. Ora, o ideal será entender-se que estes planos não devem imiscuir-se, sobretudo o primeiro não deve esmagar o segundo, e que deve estar ao seu inteiro serviço e não o inverso. Nesta matéria, para nos mantermos liberais basta ler o que Locke escreveu sobre o assunto. Mas mais: que quase sempre que o estado intervém na vida privada dos cidadãos (e está frequentemente a fazê-lo), sempre que ele age como um intermediário e um decisor em assuntos que não são seus, que não domina, e de que não dispõe a informação possuída pelos directos interessados, decide pior. E que sempre que o estado elege, como fins seus, finalidades que devem resultar do livre jogo dos indivíduos e das forças sociais, sempre que ultrapassa os limites originários do pacto social liberal, acaba por cumprir deficientemente essas finalidades, de forma insatisfatória para quase toda a gente e a custos superiores aos reais, e, pior do que isso, desvia, quase sempre, recursos produzidos pelos indivíduos que se destinariam à satisfação dessas necessidades, para outras completamente distintas.
Ora, se o livre-mercado faz parte da natureza humana, se a origem das sociedades humanas reside na necessidade da sociabilidade e da troca permanente, a tendência da História não lhe é realmente favorável, como o Carlos Santos bem assinalou. De facto, não acreditando eu no historicismo e desconhecendo o que o futuro nos reserva, a verdade é que a História assinala muitos mais momentos de sobreposição dos poderes públicos sobre os privados, do que estes últimos sobre os primeiros, ou mesmo até de situações de equilíbrio. O poder é uma potência, e, como tal, a sua natureza é a expansão, já assinalava Jouvenel. As formais legais de o limitar são muito recentes, e assinalam-se historicamente do constitucionalismo oitocentista em diante. Com inúmeros reveses, como os que assistimos com a eclosão dos totalitarismos europeus no século XX, em países e em sociedades que tinham já conhecido a liberdade e o mercado, quantas vezes a pedido das próprias (do que se haveriam de arrepender). A História Política, decididamente, não é propensa à liberdade, embora o indivíduo o seja naturalmente. Nem podia sê-lo, dada a desproporção de meios de defesa do indivíduo, face aos meios que o estado tem para o domesticar. Actualmente, as democracias encontraram uma forma – aparentemente legítima, embora o não seja – de o fazerem, que é o império absoluto da lei democrática. Mas isso seria tema para outra conversa longa, impossível de enxertar neste post.
A conclusão é, para mim, evidente: a defesa da liberdade é uma tarefa diária, e faz-se sempre contra quem dispõe de efectivo poder para a pôr em causa: o estado. Por isso mesmo, compreender este último é essencial para nos podermos defender dele. E perceber a sua natureza, a necessidade que as pessoas sentem dele, as funções evidentemente úteis que ele pode cumprir, são também dados do mesmo problema que os liberais têm que enfrentar, e que consiste em defenderem a liberdade individual sem negarem a existência do político. Só a plena compreensão do que é este último, tornará eficiente a finalidade principal.
Nessa medida, interessam-me, de momento, bastante mais as objecções do Carlos Santos ao liberalismo e aos processos de livre-mercado, do que as contribuições de Adam Smith para a fundamentação desse sistema. O Carlos afirma, em síntese, que o mercado não é uma instituição socialmente natural, já que, em sua opinião, o mecanismo ordenador da troca – a catalaxia – não se encontra gravado no código genético humano, e que nada leva a supor que o sentido da História seja o livre-mercado. O Carlos tem e não tem razão, como veremos.
Eu estou inteiramente de acordo com a ideia de que os liberais – sobretudo os mais próximos do nosso tempo, têm desconsiderado o estado como instituição natural das sociedades humanas. Julgo mesmo que cometem um erro grave, porque viram as costas ao inimigo principal, recusando-se praticamente a reconhecê-lo, e refugiam-se num liberalismo meramente economicista, que lhe retira dignidade e, sobretudo, a sua natureza filosófica geral. Em abono da verdade, Hayek terá sido provavelmente o liberal clássico que melhor compreendeu a necessidade de perceber o estado e a política, tendo-lhes dedicado o melhor das suas obras, a meu ver o LLL, Os Fundamentos da Liberdade, A Presunção Fatal e o inevitável Caminho para a Servidão. Mas não tem sido muito seguido, infelizmente.
As questões sobre as quais o Carlos Santos discorreu são, a meu ver, as seguintes: a origem do estado é natural ou artificial, por outras palavras, as sociedades humanas podem prescindir ou não do estado e do governo?; o mercado é uma instituição social natural ou não (outra questão, que não tratamos aqui, é a de saber se ele é o melhor mecanismo de decisão, ou se a decisão pública pode ser mais vantajosa)?; existe incompatibilidade entre ambas, e a existência de qualquer uma delas exclui a outra, ou complementa-a? Não querendo ultrapassar o espaço máximo legítimo para um texto editado num blog, vou tentar sintetizar o que penso sobre estes assuntos.
Se nos fundarmos na História, concluiremos que o estado faz parte da natureza humana e social. Ao longo dos tempos, não encontramos sociedades sem estado (seja qual for a forma, das muitas, que ele pode assumir), nem sem governo, nem sem instituições que exerçam poderes públicos de soberania. A explicação habitual de alguns liberais (que ainda há dias escutei numa sessão pública) é a de que o estado é uma máquina de opressão instituída por uma oligarquia dirigente e exploradora dos indivíduos. É uma “resposta” francamente insuficiente, sem consistência histórica, de resto, muito próxima da teoria marxista do estado. Acontece que o estado é, quase sempre, historicamente criado a pedido dos cidadãos, e não exactamente por gangs de malfeitores, embora possa ser tomado por estes, o que também não é raro acontecer. Alguma explicação deve haver para isto e essa explicação não é decididamente a de Karl Marx, ainda que travestido por roupagens “liberais”.
Se olharmos, também, para a História, veremos que os processos de mercado não se impõem automaticamente nas sociedades humanas, encontrando frequentes resistências individuais e colectivas à sua criação. O caso dos países do leste europeu aludido pelo Carlos não serve de exemplo, porquanto nem os processos de desestatização estão concluídos, nem a burocracia estatista desaparece (ou pode ser prescindível no processo de transição) de um dia para o outro, nem um sistema centralista, planificado e socialista se transforma numa economia capitalista num período de poucos anos. O facto de ainda se lá não ter chegado plenamente significa tão-somente que a transformação das economias e das políticas leva tempo, mas não necessariamente que seja impossível. O raciocínio do Carlos, segundo o qual quem viveu em economia planificada nunca, ou dificilmente, se habituará a viver numa economia aberta, segue os mesmos preconceitos de quem pensa que quem viveu longamente em ditadura dificilmente, ou nunca, se conformará com a democracia. Penso até que significam exactamente o mesmo.
Eu julgo, assim, que os liberais teriam vantagens óbvias em perceber que o estado é uma instituição social, tão antiga quanto a vida do homem em sociedade, e que a sua existência se justifica, na transformação do estado de natureza para o estado político, por necessidades individuais e colectivas efectivamente sentidas. A não ser assim, algures ao longo da História encontraríamos sociedades sem estado. O facto, é que as não encontramos. Como julgo, também, que o mercado, se entendido como o processo de livre interacção entre os indivíduos para disporem do que é seu, é uma característica da natureza humana, e que é o melhor modo dos indivíduos se realizarem na sua humanidade, de trocarem informação e de tomarem decisões. Julgo que esse processo cataláctico é melhor ordenador da vida em sociedade do que o que é imposto, suave ou brutalmente, pelo estado democrático ou totalitário. Falamos, todavia, em planos distintos, que se entrecruzam, que são frequentemente antagónicos, embora não possam dispensar-se: a sociedade política e a sociedade civil. Compreender que ambas existem, é fundamental para o pensamento liberal.
De facto, o plano do estado é o da soberania e o dos poderes públicos, enquanto que o do mercado é o domínio do individuo e das suas formas de livre associação. Ora, o ideal será entender-se que estes planos não devem imiscuir-se, sobretudo o primeiro não deve esmagar o segundo, e que deve estar ao seu inteiro serviço e não o inverso. Nesta matéria, para nos mantermos liberais basta ler o que Locke escreveu sobre o assunto. Mas mais: que quase sempre que o estado intervém na vida privada dos cidadãos (e está frequentemente a fazê-lo), sempre que ele age como um intermediário e um decisor em assuntos que não são seus, que não domina, e de que não dispõe a informação possuída pelos directos interessados, decide pior. E que sempre que o estado elege, como fins seus, finalidades que devem resultar do livre jogo dos indivíduos e das forças sociais, sempre que ultrapassa os limites originários do pacto social liberal, acaba por cumprir deficientemente essas finalidades, de forma insatisfatória para quase toda a gente e a custos superiores aos reais, e, pior do que isso, desvia, quase sempre, recursos produzidos pelos indivíduos que se destinariam à satisfação dessas necessidades, para outras completamente distintas.
Ora, se o livre-mercado faz parte da natureza humana, se a origem das sociedades humanas reside na necessidade da sociabilidade e da troca permanente, a tendência da História não lhe é realmente favorável, como o Carlos Santos bem assinalou. De facto, não acreditando eu no historicismo e desconhecendo o que o futuro nos reserva, a verdade é que a História assinala muitos mais momentos de sobreposição dos poderes públicos sobre os privados, do que estes últimos sobre os primeiros, ou mesmo até de situações de equilíbrio. O poder é uma potência, e, como tal, a sua natureza é a expansão, já assinalava Jouvenel. As formais legais de o limitar são muito recentes, e assinalam-se historicamente do constitucionalismo oitocentista em diante. Com inúmeros reveses, como os que assistimos com a eclosão dos totalitarismos europeus no século XX, em países e em sociedades que tinham já conhecido a liberdade e o mercado, quantas vezes a pedido das próprias (do que se haveriam de arrepender). A História Política, decididamente, não é propensa à liberdade, embora o indivíduo o seja naturalmente. Nem podia sê-lo, dada a desproporção de meios de defesa do indivíduo, face aos meios que o estado tem para o domesticar. Actualmente, as democracias encontraram uma forma – aparentemente legítima, embora o não seja – de o fazerem, que é o império absoluto da lei democrática. Mas isso seria tema para outra conversa longa, impossível de enxertar neste post.
A conclusão é, para mim, evidente: a defesa da liberdade é uma tarefa diária, e faz-se sempre contra quem dispõe de efectivo poder para a pôr em causa: o estado. Por isso mesmo, compreender este último é essencial para nos podermos defender dele. E perceber a sua natureza, a necessidade que as pessoas sentem dele, as funções evidentemente úteis que ele pode cumprir, são também dados do mesmo problema que os liberais têm que enfrentar, e que consiste em defenderem a liberdade individual sem negarem a existência do político. Só a plena compreensão do que é este último, tornará eficiente a finalidade principal.
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