
Nessa medida, interessam-me, de momento, bastante mais as objecções do Carlos Santos ao liberalismo e aos processos de livre-mercado, do que as contribuições de Adam Smith para a fundamentação desse sistema. O Carlos afirma, em síntese, que o mercado não é uma instituição socialmente natural, já que, em sua opinião, o mecanismo ordenador da troca – a catalaxia – não se encontra gravado no código genético humano, e que nada leva a supor que o sentido da História seja o livre-mercado. O Carlos tem e não tem razão, como veremos.
Eu estou inteiramente de acordo com a ideia de que os liberais – sobretudo os mais próximos do nosso tempo, têm desconsiderado o estado como instituição natural das sociedades humanas. Julgo mesmo que cometem um erro grave, porque viram as costas ao inimigo principal, recusando-se praticamente a reconhecê-lo, e refugiam-se num liberalismo meramente economicista, que lhe retira dignidade e, sobretudo, a sua natureza filosófica geral. Em abono da verdade, Hayek terá sido provavelmente o liberal clássico que melhor compreendeu a necessidade de perceber o estado e a política, tendo-lhes dedicado o melhor das suas obras, a meu ver o LLL, Os Fundamentos da Liberdade, A Presunção Fatal e o inevitável Caminho para a Servidão. Mas não tem sido muito seguido, infelizmente.
As questões sobre as quais o Carlos Santos discorreu são, a meu ver, as seguintes: a origem do estado é natural ou artificial, por outras palavras, as sociedades humanas podem prescindir ou não do estado e do governo?; o mercado é uma instituição social natural ou não (outra questão, que não tratamos aqui, é a de saber se ele é o melhor mecanismo de decisão, ou se a decisão pública pode ser mais vantajosa)?; existe incompatibilidade entre ambas, e a existência de qualquer uma delas exclui a outra, ou complementa-a? Não querendo ultrapassar o espaço máximo legítimo para um texto editado num blog, vou tentar sintetizar o que penso sobre estes assuntos.
Se nos fundarmos na História, concluiremos que o estado faz parte da natureza humana e social. Ao longo dos tempos, não encontramos sociedades sem estado (seja qual for a forma, das muitas, que ele pode assumir), nem sem governo, nem sem instituições que exerçam poderes públicos de soberania. A explicação habitual de alguns liberais (que ainda há dias escutei numa sessão pública) é a de que o estado é uma máquina de opressão instituída por uma oligarquia dirigente e exploradora dos indivíduos. É uma “resposta” francamente insuficiente, sem consistência histórica, de resto, muito próxima da teoria marxista do estado. Acontece que o estado é, quase sempre, historicamente criado a pedido dos cidadãos, e não exactamente por gangs de malfeitores, embora possa ser tomado por estes, o que também não é raro acontecer. Alguma explicação deve haver para isto e essa explicação não é decididamente a de Karl Marx, ainda que travestido por roupagens “liberais”.
Se olharmos, também, para a História, veremos que os processos de mercado não se impõem automaticamente nas sociedades humanas, encontrando frequentes resistências individuais e colectivas à sua criação. O caso dos países do leste europeu aludido pelo Carlos não serve de exemplo, porquanto nem os processos de desestatização estão concluídos, nem a burocracia estatista desaparece (ou pode ser prescindível no processo de transição) de um dia para o outro, nem um sistema centralista, planificado e socialista se transforma numa economia capitalista num período de poucos anos. O facto de ainda se lá não ter chegado plenamente significa tão-somente que a transformação das economias e das políticas leva tempo, mas não necessariamente que seja impossível. O raciocínio do Carlos, segundo o qual quem viveu em economia planificada nunca, ou dificilmente, se habituará a viver numa economia aberta, segue os mesmos preconceitos de quem pensa que quem viveu longamente em ditadura dificilmente, ou nunca, se conformará com a democracia. Penso até que significam exactamente o mesmo.
Eu julgo, assim, que os liberais teriam vantagens óbvias em perceber que o estado é uma instituição social, tão antiga quanto a vida do homem em sociedade, e que a sua existência se justifica, na transformação do estado de natureza para o estado político, por necessidades individuais e colectivas efectivamente sentidas. A não ser assim, algures ao longo da História encontraríamos sociedades sem estado. O facto, é que as não encontramos. Como julgo, também, que o mercado, se entendido como o processo de livre interacção entre os indivíduos para disporem do que é seu, é uma característica da natureza humana, e que é o melhor modo dos indivíduos se realizarem na sua humanidade, de trocarem informação e de tomarem decisões. Julgo que esse processo cataláctico é melhor ordenador da vida em sociedade do que o que é imposto, suave ou brutalmente, pelo estado democrático ou totalitário. Falamos, todavia, em planos distintos, que se entrecruzam, que são frequentemente antagónicos, embora não possam dispensar-se: a sociedade política e a sociedade civil. Compreender que ambas existem, é fundamental para o pensamento liberal.
De facto, o plano do estado é o da soberania e o dos poderes públicos, enquanto que o do mercado é o domínio do individuo e das suas formas de livre associação. Ora, o ideal será entender-se que estes planos não devem imiscuir-se, sobretudo o primeiro não deve esmagar o segundo, e que deve estar ao seu inteiro serviço e não o inverso. Nesta matéria, para nos mantermos liberais basta ler o que Locke escreveu sobre o assunto. Mas mais: que quase sempre que o estado intervém na vida privada dos cidadãos (e está frequentemente a fazê-lo), sempre que ele age como um intermediário e um decisor em assuntos que não são seus, que não domina, e de que não dispõe a informação possuída pelos directos interessados, decide pior. E que sempre que o estado elege, como fins seus, finalidades que devem resultar do livre jogo dos indivíduos e das forças sociais, sempre que ultrapassa os limites originários do pacto social liberal, acaba por cumprir deficientemente essas finalidades, de forma insatisfatória para quase toda a gente e a custos superiores aos reais, e, pior do que isso, desvia, quase sempre, recursos produzidos pelos indivíduos que se destinariam à satisfação dessas necessidades, para outras completamente distintas.
Ora, se o livre-mercado faz parte da natureza humana, se a origem das sociedades humanas reside na necessidade da sociabilidade e da troca permanente, a tendência da História não lhe é realmente favorável, como o Carlos Santos bem assinalou. De facto, não acreditando eu no historicismo e desconhecendo o que o futuro nos reserva, a verdade é que a História assinala muitos mais momentos de sobreposição dos poderes públicos sobre os privados, do que estes últimos sobre os primeiros, ou mesmo até de situações de equilíbrio. O poder é uma potência, e, como tal, a sua natureza é a expansão, já assinalava Jouvenel. As formais legais de o limitar são muito recentes, e assinalam-se historicamente do constitucionalismo oitocentista em diante. Com inúmeros reveses, como os que assistimos com a eclosão dos totalitarismos europeus no século XX, em países e em sociedades que tinham já conhecido a liberdade e o mercado, quantas vezes a pedido das próprias (do que se haveriam de arrepender). A História Política, decididamente, não é propensa à liberdade, embora o indivíduo o seja naturalmente. Nem podia sê-lo, dada a desproporção de meios de defesa do indivíduo, face aos meios que o estado tem para o domesticar. Actualmente, as democracias encontraram uma forma – aparentemente legítima, embora o não seja – de o fazerem, que é o império absoluto da lei democrática. Mas isso seria tema para outra conversa longa, impossível de enxertar neste post.
A conclusão é, para mim, evidente: a defesa da liberdade é uma tarefa diária, e faz-se sempre contra quem dispõe de efectivo poder para a pôr em causa: o estado. Por isso mesmo, compreender este último é essencial para nos podermos defender dele. E perceber a sua natureza, a necessidade que as pessoas sentem dele, as funções evidentemente úteis que ele pode cumprir, são também dados do mesmo problema que os liberais têm que enfrentar, e que consiste em defenderem a liberdade individual sem negarem a existência do político. Só a plena compreensão do que é este último, tornará eficiente a finalidade principal.
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