04 novembro 2009

o problema do estado

O único liberal contemporâneo que escreveu, com lucidez, sobre a origem do estado terá sido Robert Nozick, que dissertou inteligentemente sobre o tema no seu famoso livro Anarchy, State and Utopia. Segundo ele, o estado é um produto da ordem espontânea, resultante de necessidades individuais e colectivas de protecção, que levam à instituição, primeiro, de um “estado ultra-mínimo”, num momento em que não existe ainda a monopolização das suas funções por uma única agência política, que acaba sempre para evoluir para um “estado mínimo”, onde, por via dos processos de eliminação da concorrência, essa monopolização já se verifica. A visão de Nozick inspira-se no contrato social de Locke e não agrada a um número substancial de liberais, que preferem ver a constituição do estado com um processo artificial de conquista de poder e de vastos domínios territoriais por genuínos grupos de malfeitores (vd. a crítica a Nozick feita por Rothbard no The Ethics of Liberty), do que o resultado de necessidades espontâneas dos indivíduos e das suas formas societárias de agregação.

A verdade, é que Nozick tinha razão, e a maior parte das críticas que lhe foram movidas carecem de bom senso e rigor histórico. De facto, se olharmos para a História, encontraremos a situação descrita por Nozick em praticamente todos os momentos registados da constituição de estados e, antes deles, de instituições de governo (ou estados lato sensu, se preferirmos). Verificaremos que foram as necessidades de protecção sentidas o primeiro sentimento instituidor das formas primevas do estado nas cidades da Antiguidade Clássica, na organização feudal da Idade Média, e detectaremos também, logo em seguida, a eclosão de conflitos pela posição dominante desse mercado. A passagem desse “estado ultra-mínimo” para um “estado mínimo” opera-se, efectivamente, com a assunção do monopólio do uso da força por um desses grupos, em processos frequentemente muito turbulentos e de conflitualidade elevada.

É certo que a evolução desse mínimo evolui, uma vez consolidado o monopólio, para um estado tão grande quanto lhe for permitido crescer. Aí, alguns liberais ignoram em absoluto a natureza da política e tentam fazer de conta que ela não existe. É um erro enorme voltar as costas à natureza política do homem, à sua vocação pelo domínio e pelo poder. Qualquer abordagem etológica do comportamento humano explica a base instintiva e genética da vontade de domínio e do desejo de poder. O espírito de cooperação e de contrato, que são a essência da vida social privada, coexistem, nem sempre da melhor maneira, com a soberania e o poder público. Mas nunca encontramos um sem o outro.

A História evidencia também que esse impulso político é ameaçador da liberdade e que o estado e o aparelho de poder são frequentemente postos à disposição de interesses egoístas e de grupo, prejudicando gravemente a liberdade individual e os direitos fundamentais que deveriam caber aos cidadãos. O modo de restringir o impulso totalitário de todo o poder não é, todavia, negar a existência inevitável de um domínio político nas sociedades humanas, pelo contrário, é aceitá-lo e encontrar as formas de o limitar e reconduzir às suas funções pactícias originárias.

Foi isso que fizeram os movimentos constitucionais oitocentistas, de forte inspiração liberalizadora, quer pela intenção de conter o poder de soberania e conformá-lo por regras jurídicas gerais e abstractas às quais ele teria que obedecer, quer pela consagração de um núcleo de direitos fundamentais dos indivíduos que os poderes públicos teriam de respeitar, quer pela consagração do princípio da separação funcional e orgânica dos poderes soberanos, quer ainda pela completa autonomização da função judicial dos demais poderes do estado. Como bem explicou Hayek no seu livro The Constitution of Liberty, nos séculos XVII e XIX, Constituição era sinónimo de “poder limitado”. Esse sentido original está hoje muito esquecido.

O constitucionalismo oitocentista conseguiu efectivamente recolocar o estado nos seus limites pactícios originários, o que levou Karl Marx a classificar, e bem, os estados europeus constitucionais de democracias burguesas. Na verdade, fora a burguesia ascendente que, a partir da sociedade civil e não da sociedade política, conseguira fazer-se respeitar e impor limitações ao poder do estado. Conseguira, também, fazer valer as suas aspirações à protecção da propriedade e da liberdade de comércio. Graças a isso, os benefícios gerados abrangeram um número elevado de pessoas e o século XIX foi, na generalidade dos países ocidentais, um período de desenvolvimento, de crescimento económico, e de aumento de bem-estar para um número crescente de pessoas que anteriormente não possuía as mínimas condições de vida, muitas delas não conseguindo sequer sobreviver por muito tempo. Os avanços tecnológicos e os desenvolvimentos científicos acompanharam este movimento geral de progresso.

Posteriormente, este desenvolvimento e crescimento social geraram novos problemas e outras necessidades. O desejo de protecção cresceu e originou uma nova forma de estado, visível já no fim daquele século, e florescente desde os primórdios do passado século XX. A leitura feita pelas populações dos desequilíbrios sociais sentidos foi deficiente e originou o Estado Social, na maior parte dos casos a pedido das pessoas que julgaram vir a beneficiar desse proteccionismo. Hoje mesmo, com a falência generalizada do estado contemporâneo, esse instinto de protecção é quase sempre superior ao desejo racional de liberdade.

A missão dos liberais contemporâneos é hoje muito semelhante à dos constitucionais de oitocentos: eles precisam de refundar o Estado Constitucional e de voltar a remeter o poder político para os parâmetros que justificam o pacto social, explicando às pessoas que elas têm a ganhar com menos estado do que com o estado que hoje têm. Mas não vale a pena dizer-lhes que viverão sem estado, por que não só elas não o desejam, como nunca acreditarão nessa possibilidade.

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