06 novembro 2009

mercado ou estado?

O Carlos Santos retorquiu neste post, como se era de esperar, muito bem feito, os meus pontos de vista sobre o estado e o mercado, concluindo pela insuficiência do segundo e pela necessidade interventora do primeiro para lhe corrigir as ineficiências. O Carlos Santos é um defensor enérgico do Estado Social, a meu ver, o mais capaz da blogosfera portuguesa. Uma vez mais, tem razão em muito do que escreve, mas é inconclusivo nalguns pontos essenciais.

Para já, gostaria de adiantar que o liberalismo não tem que ficar refém do Leviathan de Hobbes, nem do optimismo antropológico de que os críticos do liberalismo frequentemente o acusam. Como também não faz parte do pensamento liberal clássico a negação da existência de instituições sociais e políticas, de normas de direito que relacionem os indivíduos e imponham limites (morais, éticos e simplesmente procedimentais) à sua liberdade, tão pouco a necessidade do estado político em substituição do estado de natureza. Nunca passou pela cabeça dos clássicos negar a necessidade dessas instituições – entre elas o estado, o governo e as instituições de justiça -, e, salvo melhor opinião, a sua rejeição não cabe no liberalismo, pertencendo antes às utopias construtivistas e (algumas) revolucionárias, que refutam todos os pressupostos sobre o qual assenta.

Para o liberalismo, o homem é propensamente sociável e da sua liberdade nasceu a sociedade, a cooperação, a divisão do trabalho e todos os valores morais e éticos onde assentam a liberdade e a sociedade. Mas o homem não faz parte da corte dos anjos e, por isso, do exercício da sua liberdade individual resulta o conflito, o desentendimento e a violação constante dos direitos individuais alheios. Para diminuir essa conflitualidade, que é também natural no homem e na vida em sociedade, os homens deixam livremente o estado de natureza e instituem a sociedade política, isto é, um aparelho de poder cuja finalidade, subscrevendo Locke, reside em assegurar-lhes a propriedade, a vida, em suma, a liberdade e as condições para a exercerem. Este é, no essencial, o mito fundador do estado, segundo o Liberalismo Clássico.

Numa perspectiva liberal, essas instituições funcionam – ou deveriam funcionar – inspiradas em regras gerais e abstractas, buriladas pelo tempo e pela tradição, das quais resultam os melhores processos de selecção de soluções para os problemas que mais os afligem. É certo que - a meu ver infelizmente - nem todas as sociedades se estruturam política e juridicamente deste modo, tendo muitas (entre elas, a nossa) seguido outra tradição distinta - concretamente a romanística do Baixo Império - segundo a qual o legislador dispõe quase livremente da norma jurídica, desde que tenha legitimidade política (uma das muitas "legitimidades" enunciadas ao longo da História...) para o fazer. É por essa razão que os liberais sentem mais afinidade com a common law e com a tradição jurídica anglo-saxónica, do que com o racionalismo jurídico francês burilado pelo Ancien Régime e consagrado na Revolução Francesa (vale a pena ver o que a respeito desta tradição centralista e estatista escreve Tocqueville no L’Ancien Regime et la Révolution).

Nesta perspectiva das coisas, a defesa dos direitos individuais violados pela livre disposição das vontades individuais em processos de mercado, alegada pelo Carlos, ocorre, em primeira instância, pela liberdade contratual individual – que nos permite firmar, ou não, os vínculos que entendemos -, e, em segunda instância, pelas normas jurídicas resultantes de procedimentos consuetudinários e jurisprudenciais, que o estado e o legislador asseguram e garantem, se necessário. Nessa medida, nem o liberalismo ignora a conflitualidade social, nem a necessidade dos indivíduos se protegerem uns em relação aos outros, tão pouco a existência de outros poderes operantes na sociedade, que não apenas o estado.

O exemplo dado pelo Carlos Santos sobre as normas comunitárias relativas à protecção da concorrência é, de resto, excelente. Sendo eu um entusiasta da cataláxia comunitária, e vendo nos seus princípios fundamentais do mercado livre e concorrencial os próprios princípios do Liberalismo Clássico (para mim, sabendo embora que isto é, para muitos liberais, uma heresia, Jean Monnet foi um dos últimos liberais clássicos relevantes na política europeia), lembro ao Carlos que essas normas jurídicas, hoje fundamentais na construção comunitária, foram resultado, não do legislador comunitário, mas do seu Tribunal de Justiça, em resposta às necessidades sentidas pelos cidadãos e pelas suas empresas. Tratou-se de um processo normativo resultante da jurisprudência e não de declarações legislativas soberanas, há que notar. Muitos desses princípios liberais da construção comunitária – por exemplo, a livre-concorrência, a livre circulação de capitais, pessoas e bens, etc. – tiveram que ser “impostos”, na prática, pela fiscalização permanente do Tribunal de Justiça e da jurisprudência que dela decorreu, contra a própria vontade dos estados, que os não teriam facilmente aceite de outro modo. E que, de resto, hoje mesmo ainda, os violam frequentemente, o que leva à interposição de processos judiciais naquele Tribunal.

Os outros casos referidos pelo Carlos – nomeadamente os abusos das entidades patronais, inequivocamente dotados de um poder superior ao dos trabalhadores – não são desconsiderados pelo liberalismo. Sobre isso, há que dizer, em primeiro lugar, que o liberalismo não considera perfeito o mecanismo do mercado. O que diz é que ele é menos imperfeito do que os processos de intervenção pública nos processos de mercado. Ou seja, numa relação laboral, desde logo, um trabalhador descontente poderá desvincular-se da empresa que o maltrata e procurar uma outra que lhe reconheça os méritos que julga possuir. Aí, infelizmente, o liberalismo não partilha do igualitarismo biológico de alguma esquerda, essa sim muito optimista sobre o género humano, segundo a qual todos somos iguais e todos teremos direito a posições sociais idênticas, em virtude dessa suposta igualdade. As pessoas são diferentes e, sendo certo que as condições de partida podem agravar essas diferenças, os talentos de cada um e o destino que lhes é dado pela sua aplicação, pelo seu trabalho e pelo seu esforço, podem nivelar e até mesmo superar essas diferenças. Felizmente, nas sociedades de origem capitalista onde vivemos, a relativa liberdade económica existente foi permitindo que as pessoas pudessem dispor de bens e serviços essenciais à sua formação, a preços razoáveis, que lhes permitem ultrapassar as diferenças de origem, conseguindo conquistar as posições que merecem. Mas mais ainda: não vejo nenhuma violação de princípios liberais – bem antes pelo contrário – na associação livre de trabalhadores para a constituição de sindicatos ou de grupos de pressão sobre os empresários. Vejo até utilidade nisso, e acredito que essas associações – ou sindicatos – possam conseguir melhores contratos de trabalho para os seus associados, e melhores condições de trabalho. Mas já considero grave e violador da liberdade económica e empresarial, que o legislador conceda benefícios proteccionistas a essas associações, em sistemático detrimento dos empresários e das suas empresas. Trata-se, a meu ver, da consagração legal do princípio marxista da luta de classes, em sociedades onde devia prevalecer o princípio da cooperação, que decorre do intervencionismo estatal e da convicção de que ele pode superar as imperfeições do mercado. Porque razão hão-de os empresários estar obrigados ao salário mínimo, a regras draconianas para o despedimento dos trabalhadores que os tribunais especializados sempre aplicam em seu desfavor, ao direito à greve e à proibição do lock-out, e por aí em diante? E que consequências têm estas medidas para a liberdade económica e para o crescimento e desenvolvimento dos países onde vigoram? A este propósito, quase me atreveria a sugerir ao Carlos que observasse com atenção o que se passa, neste domínio, na legislação laboral brasileira, que nós ingenuamente pensamos ser ultra-proteccionista, mas que garante os direitos dos trabalhadores decorrentes da sua liberdade contratual, sem paralisar as empresas e os empresários com imposições, na prática, dirigistas das suas empresas. Vale a pena conhecê-la, até porque ela explica muito do crescimento recente do país e o abandono massivo da situação de miséria em que se encontrava, até há nem pouco tempo, parte substancial do povo brasileiro, decorrente de legislação, essa sim, ultra-proteccionista vinda ainda do tempo da ditadura...

Retorquindo, finalmente, ao Carlos invertendo a sua própria argumentação, eu acredito que o crescimento dos poderes do estado e as consequências socialmente asfixiantes que dela decorrem, são inevitáveis num Estado Social que privilegie o princípio do intervencionismo em detrimento da liberdade de mercado, e que dê plena liberdade ao legislador para agir sempre e quando vê ou antevê uma “falha” do mercado. A realidade portuguesa está aí, em minha opinião que sei não ser a do Carlos, para o demonstrar: o país tem-se vindo a afundar numa economia cada vez mais depauperada, em favor de umas finanças públicas que “corrigem” as suas ineficiências. O problema é que, para satisfazer a conta do estado, cada vez mais há menos economia. Por outras palavras, o Estado Social tem em si mesmo os germes que levam à sua própria destruição. Como, de resto, os últimos governos têm constatado, sem conseguirem oferecer alternativas e soluções dentro do quadro geral do estatismo e do proteccionismo cultural e politicamente dominantes.

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