11 setembro 2009

rupturas

A III República nasceu da implosão de um regime com quarenta anos de história, durante os quais viveu sob a tutela do seu pai fundador – António de Oliveira Salazar, não tendo, por isso mesmo, conseguido renovar-se e sobreviver à morte física do patriarca. O regime caiu sem esboçar um simulacro de resistência, deposto por homens que lhe pertenciam, ou em quem pelo menos confiara, pertencentes aos quadros médios e superiores das Forças Armadas. Desde logo, os Generais António de Spínola e Costa Gomes. A primeira preocupação da “revolução”, mais do que resolver os problemas internos do regime, era encontrar uma solução política para as guerras em África, um estrangulamento político grave para o qual o regime não oferecia solução visível. A democracia, o pluralismo e a liberdade de expressão não eram as preocupações prioritárias dos revolucionários. Foram-no mais tarde, com a adesão dos movimentos civis à revolução.

O regime que a Constituição de 1976 instituiu fundava-se numa leitura socialista da democracia ocidental. Os valores democráticos fundamentais estavam lá, mas lá estavam também as restrições à propriedade privada, à livre empresa, ao mercado, e, em contrapartida, privilegiavam-se a propriedade pública, o socialismo romântico cooperativista, os privilégios sindicais, os vários proteccionismos pretensamente igualitários.

Todas as tentativas de aproximar o regime das democracias liberais ocidentais resultaram do esforço violento de homens como Francisco Sá Carneiro, Cavaco Silva e, vá lá, de Mário Soares, ou de imposições vindas do exterior, como as do FMI, no fim da década de 70 e no princípio da de 80, e da CEE, nas negociações para a nossa adesão. Foram, todavia, sempre contra o espírito do regime e até mesmo da letra da Constituição, que teve mesmo de ser revista para adequar-se à adesão comunitária.

Por isso, a III República nunca se reformou profundamente. Ainda hoje, ela mantém uma conotação evidentemente esquerdista no texto da sua Constituição e nas suas traves mestras organizativas, como a legislação laboral, o modelo de segurança social, a lógica redistributiva e a elevada carga fiscal que lhe é inerente, o princípio da prestação de serviços de educação, saúde e outros por parte do estado. Paralelamente a isto, a classe política foi-se isolando do país, e fechando progressivamente os canais de acesso à nomenklatura. Por isso, o regime conheceu, nestes trinta e cinco anos de existência, dois estrangulamentos que lhe poderiam ter sido fatais: o primeiro, em 1983, com a necessidade da criação de um governo de bloco central do PS e do PSD para o salvar (não se esqueça que, nessa altura, Portugal ainda não era membro da CEE); a segunda, agora – em que sintomaticamente se volta a falar do bloco central -, numa altura em que os partidos estão cada vez mais distantes dos cidadãos e em que vivemos uma grave crise económica, sem fim à vista. As condições para uma ruptura do regime estão aí, como estiveram em 1983. Se, na altura, salvou-nos a adesão à CEE e o desenvolvimento económico que daí resultou, agora, quando a União Europeia já nos deu o que tinha a dar, só uma transformação interna profunda do regime o poderá salvar.

Insistir no modelo socialista e estatista dos últimos anos só poderá piorar o que já está. O Estado Social não se vai transformar por passe de mágica e as tendências acentuadas de empobrecimento nacional – provocado por um estado devorador e obviamente improdutivo – agravar-se-ão. Duvido que o regime sobreviva mais quatro anos assim. Por consequência, apenas uma ruptura interna o poderá salvar. Objectivamente, apenas o PSD poderá estar em condições de a promover, como, aliás, sucedeu em 1986. Se vai fazê-lo ou não, na eventualidade hipotética de ganhar as eleições e conseguir formar governo, ignoro-o. Ninguém pode fazer futurologia política com êxito. Mas não tenho dúvidas de que essa é a única hipótese de redenção do regime. Se falhar, a III República dificilmente lhe sobreviverá e a hipotética solução para a crise nacional virá certamente de fora do regime.

Sem comentários: