06 julho 2009

Cambridge


Certas inovações protestantes não funcionam em países de cultura católica, certamente que não com a mesma eficácia. Tratarei aqui das universidades privadas.

As mais reputadas universidades do mundo são universidades privadas, como Harvard e Cambridge. No entanto, em Portugal, as universidades privadas estão talhadas para o falhanço. Porquê? Por causa da nossa cultura católica que, ao importar a instituição e ao aculturá-la, introduz certos elementos, às vezes pequenos e quase invisíveis, mas que são decisivos para o seu destino final.
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As Universidades de Harvard e Cambridge são duas das mais antigas universidades americanas e distam menos de 300 km uma da outra. Foram fundadas por duas denominações protestantes rivais. Até este ponto elas não diferem muito das Universidades de Coimbra e de Évora, as duas universidades tradicionais portuguesas. Também elas foram fundadas pela Igreja Católica (o Marquês de Pombal viria a extinguir a Universidade de Évora), a única diferença é que esta não tinha rival no país.

Os fundadores de Harvard e Cambridge nunca admitiriam que entre eles e Deus - porque, na realidade, as universidades foram fundadas para o serviço de Deus - alguém se intrometesse, como é normal na tradição protestante. Pelo contrário, em Portugal, as primeiras universidades foram fundadas pelos próprios intermediários entre o homem e Deus. Esta intermediação da autoridade eclesiástica garantia a sua qualidade.

Até hoje, as universidades privadas nos EUA não estão submetidas à tutela de ninguém que garanta a sua qualidade e, não obstante, a sua qualidade, como nos casos citados acima, está para além de toda a suspeita. Pelo contrário, quando as primeiras universidades privadas (laicas) surgiram em Portugal, a questão que imediatamente se colocou foi a seguinte: Quem nos garante que elas vão fornecer um bom serviço de ensino?
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A tradição católica é a de pôr entre o homem e a verdade (Deus), outros homens que certificam a qualidade da verdade, ou do caminho para Deus. Por isso, o passo seguinte foi o de submeter as universidades privadas à tutela de certificadores de qualidade, que já não eram eclesiáticos, mas laicos - a burocracia do Ministério da Educação. Rapidamente as universidades privadas foram sujeitas a um controlo académico muito superior àquele que era imposto às universidades públicas. Em matéria académica, as universidades públicas permaneceram muito mais livres (cursos, programas, contratação de pessoal docente), já que aí o controlo e a garantia da ortodoxia se operava por outra via - a do financiamento.

À medida que o tempo decorreu, a legislação aprovada para regulamentar as universidades privadas fazia-as parecer cada vez mais com as universidades públicas, sempre tomadas como modelo. O resultado inevitável era o de que chegaria o momento em que em Portugal existiriam lado a lado universidades públicas e privadas, que, do ponto de vista académico, eram essencialmente iguais, a única diferença sendo que nas primeiras se pagava um preço subsidiado e nas segundas o preço do mercado era pago por inteiro.

O resultado não podia ser outro para as universidades privadas - a falência -, que é para aí que se encaminham as que ainda restam. Visto de outro modo, as universidades privadas serviram em Portugal somente para absorver o excesso de estudantes que a partir de meados da década de 70 não encontrava lugar no sector público. Agora, que as universidades públicas já conseguem satisfazer a procura, as universidades privadas não são necessárias para nada. As universiddaes privadas em Portugal (como aliás, as públicas) nunca visaram a busca da verdade. Elas possuem apenas uma função política, que é a de manter a ortodoxia (política) prevalecente. É para isso que existe a burocracia tutelar do Ministério da Educação.
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Eu relembro, no final dos anos oitenta, as primeiras inspecções a instituições de ensino superior privado. Os inspectores verificavam se todos os sumários estavam em ordem, se as notas estavam todas lançadas, se os professores tinham as qualificações. Intrigado, um dia perguntei a um deles se gostaria também de inspeccionar as matérias académicas, o conteúdo académico dos programas e das disciplinas, etc. Embaraçado, ele respondeu-me: "Sabe, o Ministério não tem sequer um quadro de inspectores do ensino superior. Nós próprios somos inspectores do ensino secundário".
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Um dos significados mais profundos da reforma Protestante, e a tradição democrática que dela emergiu, foi o de uma revolução no ensino. Ela acabou com o monopólio que a Igreja possuía no ensino. Nos países católicos esse monopólio pertence hoje ao Estado. Mas a lição persiste: só existe uma maneira de fundar em Portugal uma cultura genuinamente democrática, e essa maneira consiste em tornar o ensino livre, acabando com o Ministério da Educação. Esta foi a maneira dos países protestantes e permanece ainda hoje a única conhecida. Na altura, o Ministério da Educação chamava-se Igreja Católica.
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Correcção: Onde se lê Cambridge deve ler-se Yale. As minhas desculpas pelo erro sistemático que ocorre no texto (chamar Cambridge a Yale).

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